Vaivéns
Glória Ferreira
Texto publicado no catálogo da exposição Todos os Santos, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, em 2019
Tal como as cifras e siglas do seu título, o próprio trabalho evoca pequenos segredos, convoca decifrações, e se revela em camadas de remissões entre a representação fotográfica e os diversificados signos aí inseridos.
Recurso de questionamento da representação clássica da realidade introduzida no início do século 20, em variadas estratégias poéticas, a justaposição dos mais díspares elementos permitiu novos espaços plásticos Como os planos suplementares do espaço cubista (que Greenberg assinala como “confusão e vaivém entre superfície e profundidade”); ampliou o processo de construção de significações imagéticas, e aproximação da arte e vida. E permanece como um dos meios operatórios no atual trânsito entre diferente suportes e linguagens.
Daniel Senise, neste conjunto de trabalhos, iniciados em 2005, inverte de certa maneira as prerrogativas da colagem, fazendo da fotografia o depositário de coisas do mundo, criando aí também vaivéns entre pintura e fotografia, entre o fotografado e seu próprio referente, entre suas escalas. No seu processo de trabalho, a relação com o dispositivo fotográfico vem sendo, a meu ver, um dado imanente das suas pinturas, apropriando-se e operando eventos que acontecem no ateliê e outros espaços onde trabalha, como os atuais, no Rio e em Nova York, indicados no título. Abolindo a pincelada pessoal, a tela torna-se, como diz, “testemunha de um evento”, transpondo texturas e formas, em que margens são deixadas aos acasos. “O que se arranca e transpõe do ambiente do ateliê como ‘fundo’ e ponto de partida da obra é a própria matéria do mundo impregnada num corpo, a pintura. A superfície será, então, o próprio abismo”, assinala Paulo Herkenhoff.
Impregnação da pintura com a matéria do mundo, fazendo uso das palavras do crítico, que estabelece variados laços com o dispositivo fotográfico e sua reação instantânea à informação luminosa: corte na duração e recorte do espaço.
Investindo na multiplicidade de significados conexos e complementares da relação entre a presença que “aconteceu”, como evento — e assim guardando analogias com o dispositivo da fotografia —, e o “acontecer” próprio ao mundo que a pintura convoca, o trabalho de Daniel Senise vem construindo grandes e intricados espaços virtuais em laboriosas justaposições e reorganizações de recortes de telas impregnadas em seus ateliês, nas quais a continuidade com o mundo é um horizonte poético — assegurando, porém, a simultaneidade enquanto temporalidade.
Mais recentemente o processo tem se dado em outros espaços distintos do ateliê, na Lapa ou em Nova York. Espaços precários, semiabandonados. Espécies, contudo, de extensão do que em outra ocasião Senise definiu como “parte do problema” das situações de embate do seu trabalho com o mundo. Espaço sempre evocado e atualizado em sua reconstituição como pintura. Nestas séries, os próprios lugares são trazidos nas imagens dos fotógrafos Thiago Barros e Fernando Laszlo, com angulações que se querem reveladoras do espaço — algo próximo às fotografias dos grandes planos arquitetônicos apresentando chãos e tetos.
Nessa conformação espacial, o lugar de atuação, em princípio invisível, é redefinido em local de experiência, como algo que está aqui e agora pela coexistência de detritos do chão, de fatias de telas impregnadas, de madeiras e outros elementos no próprio corpo das imagens fotográficas. Ora reforçando seus planos fictícios, ora rompendo a lógica da profundidade pela criação de relevos, criam variadas situações a partir, por vezes, da mesma série.
Trazendo diversificadas relações estruturais com sua pintura, particularmente no que diz respeito ao ambiente de registro dos fragmentos do chão onde as matérias e formas são descoladas, essa série remete à presença do ateliê ao longo da história da arte, com suas significações e importância nas transformações de linguagem. Entre outros, são exemplares o célebre L’atelier du peintre de Courbert, em que o meio de arte de seu tempo é representado revelando as novas concepções da arte que então se operavam; os ateliês de Mondrian que se figuravam como prenúncio de uma arte futura; ou ainda o ateliê de Brancusi no qual a mobilidade dos elementos fixados por ele em surpreendentes clichês, visava afirmar a relação entre obra e seu contexto de inscrição.
Mesmo relegado ao papel de depositário de arquivos diante da supremacia acordada ao projeto pela arte conceitual, a singularidade desse local de trabalho se inscreve nas estratégias poéticas. No caso de Daniel Senise, seja partilhando com outros artistas, mantendo dois ateliês como no período em que residiu em Nova York, esse espaço sempre se configurou “parte do problema”, como referido acima: “o modo como trabalho é resultado de uma imersão no ateliê, uma saturação”, diz o artista.
34-01 38 AVE, LIC / S.R. 34, RJ / W.L. 140, RJ ao revelar o espaço de configuração do seu processo pictórico, ao mesmo tempo, constituindo o seu próprio universo, talvez inaugure uma nova relação do artista com a imagem, reiteradas vezes por ele indicada, desde sempre, de grande atração — mediada, porém, na sua trajetória, pela pintura. Ao se inscrever em uma nova imagem como reprodução, as marcas e relevos dos objetos anexados transformados eles mesmos em imagens, indicam a resistência do trabalho à perda de sua corporalidade, mas também uma certa alforria de e enquanto imagem.
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