Daniel Senise

Todos os Santos

Daniela Labra

Texto publicado no catálogo da exposição Todos os Santos, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, em 2019

                                          “No caso das ruínas, o que está supostamente presente e transparente, sempre que se afirma a autenticidade, só está presente como ausência: é o presente imaginado de um passado que agora só pode ser apreendido em sua decadência. Isso deixa a ruína sujeita à nostalgia.”¹

Andreas Huyssen

 

A ruína como metáfora e vestígio da passagem do tempo, testemunha da decadência e elemento nostálgico, é um dos motes recorrentes na obra de Daniel Senise, cuja prática artística se fundamenta na pintura, sua fatura, história e tradição. Ao longo da trajetória iniciada nos anos 1980, contudo, o artista foi abandonando métodos pictóricos tradicionais, investigando materiais e técnicas para estender seus assuntos conceituais e formais para além do clássico canvas, ressignificando como “tela” distintas superfícies planas onde o signo da pintura — sua forma retangular, janela para o mundo — permaneceu essencialmente intacto.

Nesta individual Senise exibe um conjunto de 21 obras inéditas ou pouco vistas, nas quais linguagens visuais e interesses formais se entrelaçam a partir do pensamento estético e filosófico que o acompanha na pós-pintura. Dos trabalhos exibidos, 19 estão sobre suporte fotográfico utilizado de modo análogo às lonas impressas com marcas de piso e sujeira, usadas como telas desde o início dos anos 2000. Desta vez, no entanto, a fotografia — que tende a ser um referencial mais fiel do mundo das coisas — surge como camada-base, plano de fundo ou cenário para composições com objetos, poeira, insetos, tecidos, madeiras e demais elementos justapostos sobre a imagem captada mecanicamente.

Sobre ampliações fotográficas de locações como o Recôncavo Baiano, Sorocaba, São Paulo, Nova York e Rio de Janeiro, captadas pelos fotógrafos Mauro Restiffe, Caetano Dias, Fernando Laszlo e Thiago Barros em diferentes séries e sob o direcionamento de Senise, elementos recolhidos nos locais retratados são aplicados em camadas que conferem profundidade, contrastes e tridimensionalidade ao plano, produzindo narrativas existenciais subjetivas. Nessas obras a investigação do artista sobre fisicalidade e desaparição, apagamentos, representação, temporalidades, dicotomia natureza/cultura e espacialidades virtuais é exacerbada pela patente materialidade que chama à realidade fora do espaço ilusório da arte. Vale apontar, ainda, uma situação de tensão-oposição temporal entre a rápida operação do “click” fotográfico, instantâneo, e a deterioração orgânica, lenta, dos elementos sobrepostos na foto.

Além das obras sobre fotografia, outras duas arrematam o conjunto da exposição: uma tela da série Biógrafo (2018) e o painel Arranjo em cinza e prata — Teatro Villa-Lobos (2019). A primeira integra o projeto homônimo iniciado em 2017 e ainda em processo, no qual o motivo de um retângulo centralizado, de mesmo tamanho, se repete em trabalhos com suportes retangulares e de mesmas dimensões em fundos diferentes. O biógrafo em questão é, portanto, esse quadro-janela aberto para paisagens mentais onde existências são narradas — e inventadas — por terceiros.

Por fim, o painel inédito Arranjo em cinza e prata — Teatro Villa-Lobos. Como todas as obras de Senise, também esta se estrutura em camadas de significantes e tautologias, propulsoras de um vaivém entre o mundo das coisas e o das ideias. O título é inspirado nas pinturas do norte-americano James Whistler (1834-1903) e composto com o nome do compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959) que, por sua vez, nomeava um importante teatro estatal em Copacabana, Rio de Janeiro, incendiado em 2015, pouco antes de sua reinauguração após uma longa reforma. Ainda hoje o local permanece interditado, sendo um dos vários símbolos da degradação rápida pela qual o estado e a cidade vêm passando desde o final das Olímpiadas, há 3 anos – que já parecem 3 décadas.

Nessa obra de dimensões épicas, resíduos de um carpete carbonizado antes mesmo de ser pisado foram recolhidos dos escombros do incêndio e justapostos sobre uma enorme superfície de alumínio espelhado, formando um mosaico desarranjado que se completa com os fragmentos da realidade refletida, incluindo o corpo do observador. A sobreposição de temporalidades fica evidente no jogo de opacidades e reflexos que fazem o passado existir no presente como triste ruína e poética da desaparição. E assim como o “click” fotográfico é da ordem do instante, os resíduos calcinados são da ordem da combustão, um fenômeno do imediato que contrasta com todas as outras ruínas degradadas lentamente, resgatadas por Senise. Arranjo em cinza e prata — Teatro Villa-Lobos é uma espécie de réquiem para um projeto civilizatório malfadado. Para esse painel, por fim, convergem as demais obras de Todos os Santos, com seus materiais marcados por uso ou esquecimento, carregados de nostalgia daquilo que nunca iremos viver.

 

Nota

1 Original: “Nostalgia for Ruins” in Grey Room, Cambridge, Mass: The MIT Press, No. 23 (Spring, 2006), pp. 6-21.

Voltar