Daniel Senise

Sudário-Memória

Ronaldo Reis

“Se, para dar em obra, o artista inventa coisas (formas, quem sabe, até conhecimentos), nada disso é o que interessa à obra enquanto obra de arte”.

MD Magno

No ateliê, ainda em início de conversa, o artista espreme uma pequena quantidade de tinta ocre na borda de uma bacia de plástico cheia de água. Em seguida, agindo enquanto fala, despeja cuidadosamente a água com tinta rala sobre as inúmeras telas dispostas no chão.

Mais adiante, perguntando se eu queria uma cerveja, abre a lata sobre a mesma tela e, repetindo o gesto anterior, espalha um pouco da espuma na superfície. Continuamos a conversar. Faz calor. Suamos, e ele fala da tensão, do cansaço e do êxtase (ou algo parecido) sempre que acaba de pintar uma série de quadros. Imagino que, sozinho no ateliê, ele despeje alguns litros de suor sobre aquelas telas, grandes lenços, absorvendo, imprimindo, marcando, memorizando.

A obra de arte de Senise, grande lenço grande tela, narra trajetórias, em imagens e silêncio. Eu disse silêncio? E o que nos importa saber sobre esse silêncio?

Ao contrário do que se tem afirmado, imagens dizem muito pouco sobre a obra de arte. Dizem, é verdade, apenas o que é possível saber sobre o já conhecido, isto é, formas, histórias, ideologias, acumulação de receitas e despesas de um mundo comum, banal. A obra, enquanto obra de arte, sutilmente, esconde e instiga outro saber, silenciado. O ponto de vista das imagens nem sempre é o ponto de vista do artista, sua visão mais profunda do mundo. Certo é que muitos artistas fazem de suas obras verdadeiros retratos do modo como veem o mundo. Mas isso é uma outra história, talvez para ser contada nos livros de sociologia ou de teoria política. Marcel Duchamp, por exemplo, sempre se mostrou indiferente ao que as imagens das obras pretendiam dizer; encontrou outra coisa nelas: um silêncio essencial.

Pode-se sempre argumentar que não é bem assim, que podemos recolher das imagens de um quadro marcas de tinta, a fatura do artista, suas formas, o estilo, a técnica, tudo de material contido num quadro, e, mais, a memória do artista, suas matrizes estéticas inspiradoras, correntes filosóficas, etc, etc. Mas, o que importa isso? Tudo bem, os museus, as galerias, o circuito de arte com a sua lógica de mercado tem lá suas exigências. Mesmo o artista, que não é nenhum ET, assim também o exige, muito embora por outras razões e cético quanto ao que esperam dele nesse ambiente, o da circulação da obra de arte.

Um quadro, diz Senise, é um evento no qual recuperamos e imprimimos conteúdos aparentemente imemoriais.

Um quadro, posso acrescentar, é evento do qual não escapamos ilesos, indiferentes ao seu silêncio. Daí falarmos, e falarmos, e… Falamos para tentar dar conta de uma trajetória que, se não é a nossa própria, é a do Outro. De alguém ou algo sobre o qual não temos qualquer memória cultural.

E, retornamos ao silêncio da obra.

Falando de certo quadro que havia preparado para uma bienal, Senise procura nas palavras demonstrar o esforço que realizou no sentido de recuperar a VG — verdadeira grandeza — daquela obra (mas eu diria de outras também), não em escala, naturalmente, mas em “sensações esquecidas”. VG, sem nenhum acaso, também é na intimidade de Senise, Veiga Guignard, Alberto, um pintor modernista.

Curioso paradoxo: nada tão distante e tão próximo quanto Guignard e Senise. No seu silêncio a obra omite a presença de VG, e o que Senise está dizendo de viva voz, no seu esforço de reportagem, nada mais é do que uma intenção. Um outro evento, histórico, paralelo ao evento da obra. Aos olhos do público, aos olhos do próprio Senise, o quadro permanece em silêncio sobre o (dele? nosso?) destino daquelas intenções. Tá legal, alguém mais perspicaz sacou o lance do quadro e disse: “Aqui tem Guignard!”. E daí? O que fazer com isso? Você aí ficou mais inteligente com essa descoberta? Francamente, creio que é possível viver sem confundir educação estética com conhecimento histórico, da arte, que seja.

Então, o que encontramos na obra de Senise é uma trajetória impressa em memória (in memorian) no grande lenço grande tela que o artista, em luto, marca. Encontramos ou não, porque sempre há quem se contente apenas em reconhecer ali uma imagem palpável (moderna? pós-moderna?) do mundo, daí a obra se oferecer democraticamente para todas as escolhas, para todos os gostos.

Diante da obra de arte, que não é coisa pouca, contemplamos o silêncio feito de imagem, descartando o que é acessório, simples acréscimo ao que de essencial lá se instala, na obra, nos espreitando. Seu silêncio é um convite ao imponderável e uma recusa ao que há de histórico, de banal. No silêncio gritamos para que nos ouçam, pedimos por socorro diante da estranheza e inquietude das nossas intimidades, dos bons e maus humores que nos empurram e contêm. E para onde vamos? Onde estamos? Eis o mistério do evento: seu eterno retorno ao que há de trágico no sujeito, seu cais absoluto.

Trágico e, até certo ponto, patético; Nietzsche pergunta: “Fui compreendido?”.

Não há compreensão que dê conta do evento trágico, caso contrário seria uma história da carochinha, uma metáfora. Um quadro não é, por conseguinte, uma metáfora. Então o que nele se inventa? Invenção do sujeito que fala e fala sobre a obra, que tenta heroicamente recuperar um seu suposto sentido — que tenta fazer história —, metaforizar o contrassenso da obra de arte, nada além disso, ou tudo isso.

Das imagens — ideologias, conhecimentos acumulados, histórias, filosofias, manchas de suor, cerveja, tinta, etc, etc — que restam in memorian do sudário, contemplamos a s’obra de arte, pelo avesso, em silêncio.

Fevereiro, 1993

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