Daniel Senise

Sobre a Necessidade da Pintura

Moacir dos Anjos

Texto publicado no catálogo da exposição do artista no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Recife, em 2005

Na época em que a trajetória artística de Daniel Senise tem início – começo da década de 1980 -, existia sobre os praticantes da pintura a expectativa de que pudessem reafirmar a pertinência do meio, tido como um campo de invenção exaurido já fazia vinte anos. Essa expectativa fora alimentada pela relativa exiguidade de imaginação visual e de sensualidade na produção hegemônica do decênio precedente informada por procedimentos ancorados, majoritariamente, no conceito e na razão, às quais práticas pictóricas poderiam, supostamente, ser contrapostas. A exaustão hipotética da pintura, por sua vez, fora causada pela tentativa, elaborada por artistas modernistas, de fazer desse meio um campo de expressão autônomo – liberto, portanto, da responsabilidade de representar o mundo -, a qual teria, paradoxalmente, tornado a pintura redundante1. Muitos pintores responderam a essas circunstâncias conflitantes retornando, de forma acrítica, à tradição pré-moderna do meio, resgatando, por acomodação ou nostalgia, soluções inadequadas aos desafios postos para sua efetiva atualização. Vários outros, contudo, fizeram de suas obras um espaço de reflexão sobre o sentindo de ainda pintar após a experiência moderna, reinventando as características dessa prática e alongando, por tempo incerto, sua relevância como operação de conhecimento. É no interior desse território dúbio de adoção e questionamento da herança da pintura que, desde então, se move a obra de Daniel Senise.

Por alguns anos, o artista fez trabalhos povoados de formas orgânicas e objetos comuns, os quais, mesmo em telas de grandes dimensões, quase nunca eram representados inteiros, como se houvessem sido ampliados a ponto de não caberem íntegros nos suportes. Volumosas e ocupando toda a superfície pintada com tinta acrílica, essas imagens, construídas com reduzida amplitude cromática e acentuado interesse gráfico, chamavam tanto a atenção para seus possíveis significados simbólicos quanto, propositadamente, confundiam figura e plano, atestando a dificuldade de construir o campo da representação pictórica na contemporaneidade. O final da década de 1980 vai marcar, entretanto, uma mudança relevante de estratégia criativa, embora mantendo o impulso autorreflexivo inicial. Os trabalhos de Daniel Senise deixam de focar prioritariamente o delineamento de cenas sobre telas e se voltam, com ênfase semelhante, para a indagação sobre os processos que as formam. Ao fazer tal movimento, suas pinturas passam a incorporar técnicas não usuais no meio e recolocam, de modo inquisitivo, a importância que possa existir no ato de pintar.

Adotando, como suporte de seus trabalhos, o cretone – tecido mais fino e permeável do que os comumente usados como tela -, o artista passa, desde então, a deitar recortes amplos desse pano sobre pisos e a espalhar de modo uniforme em toda sua extensão, uma mistura de água, cola e pigmento. Atravessando suas tramas, essa mistura, após secagem completa, gruda firmemente os tecidos aos chãos onde foram esticados. Retirados dali com cuidado e esforço, esses recortes exibem, aderidos a eles de modo irregular fragmentos pequenos das superfícies onde estiveram colados (madeira, cimento), todo o tipo de impureza miúda que cai no piso e mesmo restos de tinta, testemunhos de operações semelhantes já realizadas nos mesmos cantos2. Foram esses tecidos manchados, acidentados e sujos – registros de sua maior ou menor aderência aos chãos de onde foram arrancados – que produziram os espaços pictóricos brutos sobre o qual Daniel Senise criou, ao longo de quase toda a década de 1990, imagens ambiguamente situadas entre a mimese e a invenção. Imagens que emergiam da relação entre o repertório popular e erudito de formas ditado por sua experiência sensível e as formas que lhe eram sugeridas pelas configurações aleatórias proporcionadas por seu método de decalque físico de pisos, devedor da técnica de frottage desenvolvida, mais de seis décadas antes, pelo artista alemão Max Ernst (1891-1976). Era, portanto o escrutínio demorado das superfícies repletas de vestígios ruidosos do chão – informado por sua memória de imagens oriundas dos mais diversos lugares (história da arte, propaganda, paisagens alguma vez percorridas ou imaginadas) – que indicava a Daniel Senise quais partes do suporte deveriam ser cobertas por tinta (não só acrílica, mas agora também a óleo) e quais deveriam ser deixadas sem intervenção adicional alguma, desse modo definindo figuras e fundos (ou vice­versa) e aplacando o que definiu, certa vez, como “ânsia por objetos inexistentes”3. A duplicidade de sentidos do termo objeto – simultaneamente assunto e coisa física – é sugestiva da confluência entre as imagens criadas e as matérias onde aquelas eram inscritas, ambas resultado de um indiviso processo criativo. Mediando a representação literal do mundo e o que habita o pensamento, a técnica usada pelo artista contagiava também a percepção dos trabalhos, forçando o observador a articular, sobre as superfícies pintadas que o olho percorre, marcas do acaso e outras de desígnio. Contrariando o primado da imagem na pintura, fazia, de aspectos do significante, também matéria de apreciação estética, causando o desconforto da dúvida e se impondo, portanto, como prática crítica sobre o campo pictórico4.

Alargando a pesquisa acerca das especificidades do meio onde tece seu discurso, Daniel Senise introduziu, com frequência crescente nesse período, ainda outras técnicas de criação de imagens. Depositando pó de ferro, laca, verniz ou betume sobre os panos carregados de informações retiradas do chão, deixava que os rastros dessas substâncias se entranhassem no suporte e, junto com o emprego gradualmente mais contido da tinta, conferissem aos trabalhos uma materialidade espessa e significados densos. Na série Retrato da Mãe do Artista [1992-1993], uma mesma  imagem com que inicia várias pinturas termina assumindo, a depender do que deixa fixar nas tramas dos planos, conformações e sentidos simbólicos distintos, em uma afirmação adicional de que a representação pictórica é feita de ideias e, ao mesmo tempo, dos procedimentos que as transformam em coisa física. Em trabalhos exemplarmente radicais dessa trajetória investigativa – pertencentes à série intitulada Bumerangue [1994] -, deitou pregos de ferro sobre tecidos pintados de branco, replicando percursos de voos que o lançamento de tal objeto idealmente produz. Molhando os pregos, contudo, apressou sua oxidação e consequente geração de matéria ferruginosa, impregnando os suportes claros dos tons avermelhados característicos da erosão do metal. Uma vez retirados e descartados os pregos, as linhas traçadas por esse processo eram descrições de fatos precisos feitas sem auxílio de tinta e, simultaneamente, vestígios de algo que não estava mais lá, como fossem sudários de matéria inumana. Essa ideia da representação como índice de uma falta é expressa, também, nos trabalhos em que o artista cria imagens – com tinta ou promovendo o assentamento dos materiais acima citados nos panos – que são apenas silhuetas, sejam elas de pessoas, de animais ou de objetos. Embora feitas somente de contornos e destituídas de detalhes, elas trazem informações visuais suficientes para serem identificadas, por qualquer um, como marcas claras de uma ausência5.  

A renúncia progressiva ao ato tradicional de pintar – mas não, entretanto, ao campo da pintura – conduziu Daniel Senise, desde o início da década de 2000, a explorar, de modo mais radical, as possibilidades pictóricas das técnicas de decalque físico e simbólico de superfícies. Inicialmente nomeada de Piano factory [Fábrica de pianos] – referência ao uso original do edifício onde então funcionava seu atelier -, uma série extensa de trabalhos foi construída a partir de impressões feitas, com pigmentos marrons e ocres, de pisos de tábuas corridas. Desta vez, contudo, não buscou estabelecer relações entre suas memórias de imagens e o que as manchas nos tecidos lhe podiam sugerir, reduzindo o papel do acaso no processo e definindo, desde logo, as cenas que desejava replicar. De fato, todas essas pinturas apenas reproduziam arquiteturas internas desertas e previamente inventariadas pelo artista, fossem elas os próprios lugares onde as impressões dos suportes haviam sido feitas (associação das pinturas com os espaços que lhes deram origem), as salas das instituições ou galerias onde seriam expostas (associação dos trabalhos com os espaços que lhes são destinados), ou, ainda, espaços que fazem parte do repertório da história da arte e de cujas imagens se apropriou6. Outra fundamental distinção desse conjunto de pinturas foi o fato de Daniel Senise também não apor matéria alguma sobre os tecidos, ou tampouco lhes acrescentar tinta. Uma vez definidas as imagens a serem reproduzidas, os trabalhos eram feitos unicamente por meio do corte preciso e da colagem – sobre suporte rijo de madeira – de porções dos tecidos gravados, selecionadas em função do contraste tonal adequado ao desenho de perspectivas e ao delineamento de portas, janelas, colunas e vigas. Resultava sempre dessas pinturas, portanto, a ambiguidade de serem índices materiais das superfícies decalcadas e, simultaneamente, representações virtuais de ambientes escolhidos. No plano simbólico, causava estranheza reconhecer rastros de piso (plano horizontal e rebaixado do mundo) servindo para ilustrar edificações (plano vertical onde o homem se reconhece e vive), em anulação deliberada de hierarquias. Ou, ainda, representar espaços feitos originalmente para o convívio como lugares esvaziados de vida. As divergências reconhecíveis de escala e de texturas entre ambientes decalcados e ambientes representados frequentemente sabotavam, por fim, a fidedignidade das perspectivas criadas, enfatizando a tensão entre significados diversos que o próprio processo de sua construção embutia.

Entre 2004 e 2005, o artista criou uma nova série de trabalhos onde articula procedimentos amadurecidos pouco antes e outros que, embora postos relativamente à margem por alguns anos, têm sido centrais à elaboração de uma prática inquiridora diante da pintura. Por um lado, continua empregando as operações de escolha, corte, combinação e colagem de tecidos que trazem somente a memória do contato próximo com chãos distintos, abdicando do uso adicional de tinta sobre os panos manchados. Por outro lado, contudo, não ativa mais esse processo apenas pela adesão estrita a modelos que elege previamente, cabendo, por várias vezes, também às próprias marcas impressas em tecidos o despertar de associações mnemônicas que os justifiquem como matéria e suporte para recriar lugares ou cenas. Há, simultaneamente, portanto, reduzida intervenção na construção do campo pictórico – característica das técnicas consolidadas nas pinturas da série Piano factory – e menor antecipação do que resulta da composição de imagens, tal como nos trabalhos anteriores àquele conjunto, traços expressos desigualmente em diferentes pinturas.

Por ocasiões, como em Obra [2005], os panos gravados com as marcas de pisos servem pouco mais do que como materialização de valores cromáticos necessários para representar um espaço livremente imaginado. Pedaços escuros de tecido entintado são cortados em tiras delgadas e colados em conjunção com pedaços mais claros: enquanto os primeiros exprimem uma complexa e densa estrutura que lembra palafitas fincadas à beira de mar ou rio, os segundos servem de apoio para que a construção ganhe profundidade e seja compreendida. Em algumas outras dessas pinturas, Daniel Senise se deixa atrair pela evocação que as marcas das madeiras impressas sobre os panos fazem das texturas encontráveis em gravuras por ele conhecidas, mais obviamente – mas não apenas – daquelas que usam blocos de madeira como matriz. Assim, o trabalho Barco [2005] remete a uma gravura do artista francês Gustave Doré (1832-1883) – na qual a estrutura de uma embarcação se impõe no primeiro plano de uma paisagem desolada -, e a pintura Água [2004] recorda a imagem bíblica do dilúvio gravada pelo alemão Athanasius Kircher (1602-1680), dominada por uma nave grande que flutua no mar. Já em Casa [2005l, foi a mancha aproximadamente simétrica que atravessava toda a extensão horizontal de um tecido que levou Daniel Senise a selecionar, como imagem a ser reproduzida sobre ele, a fotografia, achada por acaso, de uma casa feita de madeira refletida sobre a água de um lago. Ao espelhamento acidentalmente criado no pano, o artista deliberadamente sobrepõe, por meio do corte e da colagem de outros tecidos entintados, a imagem de mais um duplo, fazendo, da mancha do pano, representação do céu e de seu reflexo sobre superfície líquida. Em dois outros trabalhos, a importância das informações pictóricas que o tecido traz dos pisos é ainda mais decisiva para a construção de imagens. Em Mar [2005], a junção precisa de dois recortes selecionados de pano, colados sobre suporte de madeira, é o bastante para criar a ilusão de um horizonte que aparta céu iluminado e oceano em movimento, em alusão possível a pinturas do alemão Caspar David Friedrich (1774-1840) ou do inglês William Turner (1775-1851). Em Chuva [2005], por sua vez, Daniel Senise sequer combina pedaços diferentes de tecidos, restringindo-se ao demorado convívio com as impressões dos chãos e ao recorte de um único segmento que, em acordo com a lembrança de imagens que carrega, melhor pode sugerir uma paisagem. Não há nesse procedimento, entretanto, maior facilidade de invenção, mas apenas o uso extremo de um dos métodos que orientam a feitura de sua obra.

Além de distinções construtivas, esses trabalhos claramente indicam uma alteração de repertório em relação à série que os precede, afastando dos interiores antes mimetizados e buscando em paisagens – existentes ou inventadas – suas referências mais próximas Essa mudança tem ao menos duas consequências imediatas e de sentidos opostos para a sua fruição. Primeiro, o fato das paisagens serem reproduzidas a partir de impressões feitas em interiores sugere uma inadequação que desorienta o olhar do observador, levando-o a alternar seu foco de interesse entre as imagens apresentadas e a origem das impressões de que são feitas. Segundo, o fato dos decalques de pisos de madeira reproduzirem – exceção feita aos elementos naturais – coisas construídas de matéria idêntica (palafita, barco, casa) causa, ao contrário, uma identidade forte entre pintura e coisa por ela representada. Há, em quase todas as imagens dessa série, ademais, uma referência ao elemento água, implicando associações a ideias de movimento e de fluxo, ainda que, por vezes (como em Obra e em Barco), essa alusão seja apenas indicial. Não à toa, o trabalho formado por uma extensa porção horizontal de tecido presa diretamente à parede – sobre o qual o artista afixa impressões menores montadas em suporte de madeira – é nomeado de Rio [2005], em remissão metafórica a um curso fluvial qualquer e a objetos que nele flutuam. Talvez por isso, várias dessas pinturas pareçam anunciar o que vai ser ainda aprontado ou, alternativamente, sugiram o gradual desmanche do que já foi inteiro. Um barco a fazer ou destruído, casas em formação ou quase demolidas, um mar onde boiam ou afundam objetos indistintos, são todos marcas de um lugar simbólico ainda inconcluso ou em progressivo desmonte. Entre a afirmação física e próxima dos chãos reproduzidos nos tecidos usados e a amplitude vasta das imagens que eles formam, ficam suspensos, portanto, sentidos definidos para as paisagens que Daniel Senise elabora. Sem a pretensão à síntese, esses trabalhos reafirmam, ao contrário, a complexidade de sua obra, o tempo inteiro refletindo, criticamente, (sobre) a necessidade continuada da pintura.

 

  1. Entre outros, são incontornáveis os nomes dos russos Alexander Rodchenko (1891-1956) e Kasemir Malevich (1878-1935), e do holandês Piet Mondrian (1872-1944), cujas obras, ao voltarem-se radicalmente para as especificidades do próprio meio, terminaram por sugerir sua finitude histórica.
  2. Sobre a mudança dos procedimentos construtivos empregados, nesse período, por Daniel Senise, ver Cocchiarale Fernando, “sem título”, in Daniel Senise, XX Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo, Subdistrito Comercial de Arte, 1989.
  3. Mesquita, Ivo, “Território dos Sentidos”, in Ivo Mesquita, Dawn Ades e Gabriel Pérez-Barbeiro, Daniel Senise: ela que não está. São Paulo, Cosac & Naify, 1988.
  4. Uma discussão teórica dessa questão é feita em Bois, Yves-Alain, in “Painting as Model”. Cambridge, MIT Press, 1933.
  5. O uso da silhueta por Daniel Senise e discutido por Ades, Dawn, “Daniel Senise: Vestígios”, in Ivo Mesquita, Dawn Ades e Gabriel Pérez-Barbeiro, op cit.
  6. Farias, Agnaldo, “piano factory 01” e piano factory 02”, in Daniel Senise, the piano factory. Rio de Janeiro, Andrea Jackobsson, 2002.

 

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