Daniel Senise

Sangue e Areia, Portões Abertos

Marcus Lontra

Texto publicado no catálogo da exposição do artista na Galeria de Arte Centro Empresarial Rio, Rio de Janeiro, em 1984.

A pintura como técnica de combate, inserida no centro do cenário, na arena, a tela retesada, palco da ação. O artista e seus leões e gladiadores, tintas, pincéis. Daniel compreende que, na sua história, o combate é enfrentado pelos profetas e pelos guerreiros. Opta pela última. Em seus trabalhos não existe lugar para sutilezas, pequenas elegâncias. O artista incorpora a tragédia como instrumento de luta. É essa a mola impulsionadora de sua pintura, fera a ser combatida, contra a qual e pela qual Daniel incessantemente persegue o final vitorioso, round a round, quadro a quadro, momento a momento de uma batalha travada entre a certeza e a dúvida do Homem.

A atmosfera é caótica, sugere várias histórias, o olhar percorre, perplexo, o campo defrontado, sem direito a repouso. A paleta é propositalmente restrita: negros, brancos, cinzas, vermelhos, pra que mais? O que importa, aqui, é o volume, a massa, a fatura de uma pintura que se faz presente como matéria, corpo. Neste momento em que se pretende uma arte leve, cotidiana, descartável, Daniel muda a sua rota: incorpora o objeto, quadro, aceita o inevitável autoritarismo da coisa pintada e a expectativa de que ela um dia venha a desabar da parede, como “um fruto pesado e podre”.

O artista evidencia os momentos de identificação com a história da arte deste século (os expressionistas alemães, Bracque, Picasso, Guston etc). Esses momentos, entretanto, não se apresentam de maneira ordenada, eles desprezam o didatismo. Ao contrário, é a confusão que perpassa a obra, o pêndulo da história, passado, presente e futuro, rasga a obra como um pincel enfurecido. A  tragédia e a luta são as regras do jogo, caminhos nesta arena.

Importa destacar o aspecto primeiro da obra através dos croquis, projetos que o artista pré-elabora. Neles, destaca-se a presença do construído, base quase escondida da obra. O gráfico esclarece o processo, desnuda a ideologia. Depois, na tela, o artista vomita a informação, cola e tinta, a matéria despreza essa evidência da ordem e a pintura surge no momento do ato, no gesto, no movimento, no respirar do artista e nos seus braços condutores da perplexidade do gladiador diante de seu amante e de seu algoz.

A imagem surge pelos mesmos portões abertos de acesso à história. Ela é arquetípica e inusitada, recuperadora e reconstrutora. Feras, braços humanos, armas. Tudo recorre ao registro imediato do choque, do conflito. O pêndulo da história enfureceu-se e o orgânico, natural, insinua o automatizado, o elefante/robô, a Bíblia e Flash Gordon, gladiadores e astronautas guerreiros, conquistadores do espaço. A imagem final revelada atinge o limite de tensão da tragédia. Pelos cantos da boca de Sansão, otário e cego personagem magistralmente encarnado por Victor Mature, um sorriso se insinua enquanto se diverte a clamar por Deus e a derrubar templos poderosos. Esse incansável e insaciável Sansão descobriu que, diante de tanta força e sofrimento, o prazer também pode encontrar a sua vez. A trágica mensagem que os trabalhos de Daniel esforçam-se em sugerir carrega, em seu ventre, como Sansão (no ventre de Dalila…), a incômoda presença de um forte contentamento. É essa ambiguidade, essa inserção da ironia, elemento a transcender os vagos limites da tragédia e da comédia, que transforma o poderoso Sansão no simpático ursinho da fábula a indagar, assustado: “Quem comeu o meu mingau?”. E é exatamente nesta hora que a sempre trágica e combatente produção de Daniel Senise deixa transparecer o esboço de sorriso que ameaça escorrer pelos quatro cantos da sua história.

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