Quase Infinito
Alberto Saraiva
Texto publicado em Quase Aqui: Daniel Senise, Associação para o Patronato Contemporâneo, São Paulo, 2018
O conjunto da obra de Daniel Senise, hoje, nos dá a oportunidade de observar a malha complexa criada através da pintura. Não obstante, sugiro que olhemos com acuidade alguns pontos sobre os quais poderemos vislumbrar os princípios pictóricos que seu trabalho apresenta. De modo que o que vemos e só parcialmente o que a pintura é e o que dela resultou como prática reflexiva. Porque o que ela é não se vê em uma única direção, mas no conjunto geral que engloba sua história. E uma pintura comprometida com ela mesma e sua história naturalmente se incumbiria de chegar a determinados pontos que, em especial, interessariam ao artista. Não como quem sabe o que busca, mas como quem busca o que não sabe que sabe. Nesse emaranhado de intuitos e intuições é que a pintura apresenta seu modus operandi.
O termo “pictórico” em Senise não é associado diretamente à cor. Ele não desenvolve uma paleta que expressa o círculo cromático, mas opta por determinado nicho de cores que se abstém do colorido múltiplo para encarnar tons que exaltam a terra em sua entranha e a singularidade das sombras e da luz. Mesmo sombra e luz em seu trabalho operaram durante anos como uma luminescência reticente ao mais óbvio das ideias de sombra e luz. Seus contrastes movimentam-se de baixas luminosidades a uma luz diferente, menos solar e mais mística. Do mesmo modo, o pictórico em sua obra é um tipo de densidade da matéria. Tudo está circulando dentro de um sistema de migração da matéria para a tela, o papel ou a fotografia. Estar mais dentro de uma matéria é estar mais dentro de sua cor. E todas as matérias e materiais que se associam em ampla abordagem, se tornam, aí sim, seu aspecto cromático. A cor é a coisa.
Decalcar, transpor, coletar, recortar são verbos caros ao modo como este artista opera. Pensemos em Matisse, por exemplo, quando migra do pincel aos guaches découpés; ele passa a recortar a cor como se fosse ela um plano a ser fatiado. Senise depois de longa data transpondo pigmentos de uma superfície a outra repete o gesto de Matisse. Passa a recortar tanto telas e papéis quanto capas de livros forradas de tecido. Ao cortá-los e reagrupá-los se podem ver dezenas de cores e tramas que aludem ao vocabulário da pintura. “Gosto quando um grupo de recortes se adensa em diferentes texturas de tecido e gramaturas de papel”, diz o artista. Mas observemos aqui que seu gesto é a repetição de um gesto anterior, o de Matisse. É por meio dessa interlocução de ações entre pintores que a pintura circula suas ideias. Desse modo, e através desse “sistema”, sua obra recorrerá como a de outros pintores a pontos específicos gerados no tempo e na história da pintura. Proponho que esta obra seja vista a partir dessa malha de conexões.
Outro grande assunto em seu trabalho é a perspectiva. A invenção da perspectiva, Prodrome e 2.892 são, por exemplo, obras que qualificam e delineiam esse interesse. Devemos considerar aqui todos os argumentos de Páwel Floriénski sobre o advento da perspectiva na pintura e a distinção entre a perspectiva linear de Alberti e a perspectiva inversa dos pintores russos como Andrei Rublióv. Não tanto pela tensão entre uma e outra e mais pela notória abertura para outros caminhos perspéticos, mesmo que estes sejam desdobramentos históricos da perspectiva linear, como acontece na obra de Daniel Senise.
Vejamos então o caso da famosa tela O passeio em Middelharnis de Hobbema, sobre a qual Senise já se debruçou. A pintura é uma eloquente abordagem da perspectiva clássica, mas vai além da lição linear e apresenta uma grandiosa organicidade de anatomia desconcertante. E talvez, esse dado orgânico ali, dessa vereda que passa entre árvores que se movem, como que vivas, tenha interessado Daniel Senise, que, em sua interpretação, adiciona à perspectiva de Hobbema uma outra perspectiva que se projeta para à direita e para fora da tela. Senise realiza esse tipo de abordagem e de sobreposição com outras obras. O fato é que a partir de um conjunto de visões perspéticas, ele formula suas proposições sobre ambiente bidimensional e tridimensional. Parece-nos que seus esforços para a construção de tal lugar reúne desde Duccio, Simone Martini, Piero della Francesca, Leonardo da Vinci e Giotto até Hobbema e Caspar David Friedrich, dentre outros de onde suponho terem vindo os “Reinos” e as perspectivas com madeiras de andaimes que o artista passou a pintar.
E de modo singular surgem obras espaciais, e que são, mais especificamente, projeções espaciais, que chamo aqui de “fato pictórico”. Pintar é projetar no espaço um fato pictórico.
E devemos pensar que essas obras estão inseridas no âmbito da pintura como um fato que amálgama conceitos e processos advindos dela. Não são instalações, intervenções ou um site specific, embora pareçam ser à primeira vista. E seriam, se não fossem provenientes única e exclusivamente de um pensamento pictórico. Esse “fato pictórico” é, em suma, a projeção de um pensamento e sua materialização no espaço e devemos pensar sua constituição em termos pictóricos. É um equívoco pensar a pintura estritamente como imagem, quando na verdade ela é estrutura pictural, ou seja, ela tem tectônica. Os maiores exemplos desses “fatos pictóricos” são 2.892, apresentada na Casa França-Brasil em 2011, o trabalho realizado para a mostra “Made by… Feito por brasileiros” no antigo Hospital Matarazzo em 2014 e sua obra mais recente, criada para o Oi Futuro em 2015, onde uma luz “da pintura” se impõe espacialmente. É claro que a isso devemos acrescentar um certo tremor que fala sobre vida e morte, pulsões vitais que devastam inclusive a política.
É um dado a se prestar atenção, visto que a pintura sempre esteve no espaço e na arquitetura, no entanto ela volta ao espaço e à arquitetura como uma instância quântica, estabelecendo novos eixos constitutivos e projeções temporais e espaciais, e, é justamente por essa razão, como já mencionamos, que a pintura circula, a princípio, a partir dela mesma e seu vocabulário só se amplia. Mas não é só isso. Se nos voltarmos ao Prodrome, veremos uma torção no centro da perspectiva. É uma referência à visão e ao funcionamento de seu sistema ótico, que, se afetado, pode ver de forma diferente, distorcida e distanciada da realidade. Mas não deixa de ser um tipo de realidade, e isso interessa ao artista, que faz alusão a esse aparelho ótico quando este vislumbra outras modalidades de percepção do que é visto.
A essa série de itens devemos acrescentar um que é fundamental: o sudário. O tecido que enxuga o suor, que absorve a marca, que retém a matéria e que guarda na sua trama as manchas, o sangue, as células. Senise vem considerando o uso do sudário desde o início de seu trabalho e vem aplicando essa técnica de várias maneiras. Já recolheu centenas de lençóis hospitalares e outras centenas de lençóis de motéis. Esse material guarda desde manchas de sangue até de sêmen, e juntos relacionam prazer e dor, vida e morte. Esses lençóis foram esticados em duas grandes estruturas na Casa França-Brasil na obra 2.892, uma de frente para a outra, hospitais de um lado, motéis do outro, formando duas grandes paredes brancas, através das quais os visitantes passavam, como se fosse, observemos isso, a alameda de Hobbema. Esse talvez seja o ponto de vista do artista: a perspectiva é uma realidade dentro da qual nos colocamos com nossa perplexidade diante da vida e da morte. Por outro lado, os brancos convertidos em duas grandes paredes são em alguma instância uma qualidade da luz. Retomemos o início do texto, quando falamos sobre o que é o pictórico nesta obra e suas características de sombra e luz. Pois bem, esse início onde a sombra claramente se impõe dá gradativamente margem à luz, de modo que mesmo os tons avermelhados e amarelados da terra dão espaço paulatinamente aos brancos. Acentuam-se os retângulos brancos como aberturas de luz, um tipo de luz opaca que ilumina o que circunscreve com uma sóbria luminescência mística. Onde está essa luz depurada na história da pintura? Em qual pintor estaria essa origem? Certamente não é o branco suprematista de Maliévitch. A natureza dessa luz não é de fora, de uma fonte externa. É antes um branco que acolhe e exprime em seu âmbito a luz da pintura e que ocorre somente na pintura e através dela e torna-se um dado do real: um objeto oriundo de uma onda cuja emissão é mental, material e intelectual. Trata-se de uma modalidade de percepção e de pensamento. Essa luz interna de sua pintura calcina lentamente todas as outras cores e a matéria de modo a se sobrepor a tudo “até que tudo fique branquinho”, como diz o artista no pressuposto de que a luz poderia corrigir tudo. Diz-se da luz que sua ação é cumulativa, que muda as moléculas das coisas e que as transforma e as desbota. Na pintura de Senise há essa ideia também: uma luz que ilumina desde dentro e que tende a dominar o núcleo das coisas.
E este é um outro dado da pintura: há coisas que não vêm de lugar algum a não ser da subjetividade do pintor. Desde que se consiga ajustar seu ser ao ser da pintura. Esse sentido de depuração das coisas é também uma depuração de si. Assim a pintura exige que pintar seja uma ação de modificar. Pintar é mais do que a pintura. A pintura é mais do que pintar. É um movimento quase infinito.
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