Daniel Senise

O olhar iluminante

Ivo Mesquita

Texto publicado no catálogo da exposição do artista no Museo de Monterrey, México, em 1994

I

Nos últimos anos, surgiram muitas produções pictóricas que revitalizaram notavelmente o ambiente artístico internacional e atraíram os olhos da crítica, do mercado e das instituições. Essas produções englobam uma diversidade de estilos e expressões, que variam desde um vigoroso – e, por vezes, selvagem – primitivismo até o mais refinado e genuinamente elegante maneirismo. Essa saudável mescla de formas e manipulações da linguagem nos apresentou os pintores mais aclamados e interessantes das últimas décadas: Anselm Kiefer, Julian Schnabel, Susan Rothenberg, Sandro Chia, Juan Maria Sicilia, Mimmo Paladino, Guillermo Kuitca, Julio Galán e Daniel Senise, dentre outros.

Especificar a natureza dessas produções não é tarefa fácil, já que elas abarcam uma pluralidade estilística e filosófica que impossibilita a configuração de um todo ou a definição de uma “escola” ou de um “movimento” capaz de agrupar ou reunir sensibilidades tão distintas.

No entanto, mais importante que as divergências de estilos ou as diferenças de repertório e tema é o impulso, comum a todos esses artistas, de definir o presente – pessoal, artístico e ético – nos termos de uma continuidade do passado, reconciliando-se com ele. Suas produções apontam para o florescimento de uma vigorosa sensibilidade neorromântica, identificada com o desejo de realizar um asceticismo espiritual e imaginativo através da arte. De fato, em sua condição de pintores, esses artistas se definem como “poetas” ou “visionários”, pondo em evidência a grandeza e o idealismo de sua concepção de arte, cuja missão consiste em resgatar os grandes temas e o compromisso com a linguagem. Entendem a pintura como contribuição à cultura – um quadro é um quadro e existe em uma tradição que define sua natureza (a arte enquanto natureza) –, e encaram seu ofício como meio para a construção de um sentido ético do trabalho. Dessa maneira, partilham uma visão comum no que diz respeito aos propósitos da arte.

Essa peculiar e desafiadora visão romântica, filtrada pela história da cultura moderna, opera por meio de um viés representativo e figurativo ora abstrato, ora realista, mas sempre ligado ao poder expressivo da pintura e da representação. Seus trabalhos são concebidos (embora com distintas propriedades no uso da iconografia ocidental) como uma ação deliberada e pessoal que ultrapassa a realidade e as ideias representadas. Eles próprios assumem um papel transcendente em sua abordagem dos temas eternos da arte, experimentando em suas obras uma realidade para além do local, do específico e do presente. Enquanto ethos ou expressão estética, essa nova sensibilidade romântica se caracteriza pelo princípio de privilegiar a intuição em detrimento da razão. Seus trabalhos evocam os sonhos, o êxtase, a nostalgia e a memória: estados de percepção da mente, ansiosos por se transportarem a outros reinos e lugares. Reivindicam para suas obras uma existência efetiva como expressão consciente de um desejo de reinvenção da arte e da história. Mas, como observou Craig Owens em um artigo sobre as tendências revisionistas dos anos oitenta, esses artistas são:

Comprometidos não (como frequentemente defendem seus críticos, que encontram refletida nesta arte sua própria frustração com a arte radical do presente) só com a recuperação e o reinvestimento na tradição, mas também em declarar sua total falência – especificamente a falência da tradição modernista. O que estamos presenciando é, portanto, a liquidação no atacado de todo o legado modernista.

Ao recorrer a todas as qualidades manuais, imaginativas e emocionais, a estratégia desses artistas, expressa em obras alegóricas ou simbólicas, revela que eles perseguem uma verdade que não reside na literalidade das coisas ou dos eventos que pintam, mas no reconhecimento da capacidade da imaginação para criar, nomear e acreditar em verdades artísticas.

 

II

Desde o início de sua carreira, a pintura de Daniel Senise (Rio de Janeiro, 1955) se caracterizou pelo compromisso com a especificidade da pintura enquanto linguagem e pela orquestração de uma constelação de significantes: o próprio meio expressivo, o esforço construtivo da superfície, a história da arte e seu imaginário pessoal.

No entanto, longe de ser pura expressão pictórica (a celebração hedonista do ato de pintar que caracterizou grande parte das tendências “neo” dos anos oitenta), as pinturas de Senise desafiam a modernidade que serviu de tônica para a produção da geração anterior (os anos setenta). Suas telas, compostas por densos pensamentos pictóricos, colocam-no como um dos artistas mais articulados, contemplativos e sutis do cenário artístico brasileiro contemporâneo.

Seu trabalho sugere uma busca pela redefinição do papel da pintura sob a égide da pós-modernidade, não apenas como um objeto discreto e disponível para o desfrute meramente por seus atributos estéticos, mas também como uma declaração filosófica e conceitual que atua como intermediária entre os fatos mundanos e cotidianos (o que inclui a própria arte) e os anseios e ideais da imaginação humana. O ethos de sua arte é uma visão do homem. Levanta questões que suspendem e congelam o tempo, que tornam suas imagens virtualmente impenetráveis à literalidade do significado, arredia a interpretações fixas ou a iconografias formalizadas. Fascinantes, essas imagens originadas durante a construção da superfície pictórica incursionam em terrenos onde os limites do mundo visível se desfazem pouco a pouco, dando lugar a objetos/artifícios produzidos por uma “fome dos objetos que não existem”.

A exposição deste conjunto de obras tenta reproduzir o processo do artista ao criar um território para a pintura enquanto prática contemporânea. Rechaça-se a possibilidade de obedecer a uma sequência cronológica dos trabalhos, pois tal disposição esvaziaria de sentido o enfrentamento da tradição: no âmbito da pintura, ela seria imediatamente reconhecida como uma produção instituída e domesticada dentro do espaço de um museu. Pelo contrário, os trabalhos foram agrupados de modo a ordenar algumas leituras possíveis das questões que o artista propõe em sua produção, acentuando a percepção deste território circunscrito por seu trabalho.

O visitante é compelido a seguir de perto a busca incessante de Senise por materiais expressivos, composições e linguagens, dando visibilidade a esses elementos. Embora consciente da inutilidade de seu gesto, o artista e seu imaginário – um universo angustiado, povoado por vagas evocações infantis, féeries e quase-imagens, um repertório de signos carregados (o cisne, o coração, a cruz, a coluna, os pregos, a mãe, os espinhos) e referências artísticas históricas como GIotto, Friedrich, Whistler (assim como, em produções anteriores, havia referências ao barroco, ao cubismo e a Guston)  se posicionam em uma luta infindável: o esforço constante para construir uma superfície, restaurar a linguagem e ordenar os significantes.

Se a técnica muitas vezes empregada pelo artista (ver descrição no texto de Roberto Tejada neste catálogo) produz imagens fascinantes e sedutoras, que às vezes impedem a compreensão desta obra ou a limitam meramente a um desejo de beleza, o conjunto dessas imagens parece carregar a espessura e a sobriedade de uma equação duramente trabalhada. O arrebatamento de pinturas como Tudo o que existe (1989) ou da série Tower of Song (1993) está articulada com o refinamento conceitual encontrado em Sem Título (1993) e Despacho (1994) ou na série Ela que não está (1994). Não se tratam de produções paralelas. Pelo contrário, elas delimitam o espaço onde se desenvolve o trágico itinerário do artista, empenhado em fazer de seu trabalho uma metáfora para o mundo.

Talvez o interesse pela obra de Senise se deva ao fato de que seu universo pictórico foi construído sobre a consciência de um mundo irremediavelmente fragmentado, dissociado da natureza, onde o quadro é um objeto em si mesmo, condutor de signos à deriva, de relampejos inúteis em uma cadeia de efeitos sem causa, que explica e descreve o nada. Sutilmente, surgidas sobre o papel e a tela, suas imagens transportam o espectador seduzido a outro espaço, mais ventilado, não condensado, poroso, para experimentar outra vivência. E é aí, neste espaço/cena povoado por quase-objetos (elementos cegos, surdos e mudos que lutam pela sua concretização, desafiando sua condenação ao inexprimível), que o artista lança seu olhar iluminante e desvela o sentido de seus atos: revelar para o espírito.

 

Tradutor: Bruno Cobalchini Mattos

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