Fato sem Testemunha
Cecília de Almeida Salles
Texto sobre o artista publicado em francês na revista Genesis – Editions Jean-Michel Place 3, rue Lhomond 75005 Paris Tel 33 1 44 32 05 90
A obra de Daniel Senise estará sendo observada sob o prisma de seus percursos criativos. Trata-se de um olhar que transforma a obra em processo – produto em produção – e reencontra a obra sob outra perspectiva. A partir do instante em que tive em mãos os livros, produzidos pelo artista de 1988 a 1999, saía do espaço público das obras expostas e entrava nos domínios íntimos da criação com o fascínio e o temor que, quase sempre, acompanham as diferentes formas de invasão de privacidade. Quando lia e via o último livro, surpreendi-me com uma anotação de Senise que falava da concepção da pintura como “um fato sem testemunha”. Já não era mais. Ao menos, parte desta concepção acabava de ter uma cúmplice. Na posição, agora, daquela que presenciou um acontecimento, não observava obras, passei a me defrontar com suas histórias. Os vestígios deixados nestes livros apontavam para os modos (ou alguns modos) do funcionamento do pensamento criativo deste artista. Na seqüência das páginas folheadas começavam a ser estabelecidos nexos entre aqueles gestos do pensamento e da mão do artista e, assim, surgiam alguns princípios que sustentam as produções de suas obras.
Este é o olhar do crítico chamado genético que acompanha o percurso da gênese das obras de arte, por meio de uma observação atenta dos documentos, que o artista deixa ao longo desses processos. São retratos temporais de gêneses que agem como índices dos caminhos da criação. O interesse está voltado para os testemunhos materiais do processo criador. Há, muitas vezes, por parte do artista, necessidade de registrar algumas idéias, imagens, traços, que podem ser possíveis concretizações da obra ou auxiliares dessa construção. Em termos gerais, esses documentos desempenham dois grandes papéis ao longo do processo criador: armazenamento e experimentação. Mas cada artista tem seu modo próprio de agir neste espaço onde informações diversas são recolhidas e obras testadas. O contato com esse material nos permite sempre assistir a espetáculos, às vezes, somente intuídos e imaginados ou indiciados nas obras.
Fica claro que as pinturas de Senise, neste caso, são o ponto de partida desta perspectiva processual, na medida em que é exatamente porque existem e nos atraem que temos o interesse de conhecer melhor os sistemas responsáveis por suas criações. Ao longo do estudo dos documentos do artista, as obras passam, metodologicamente, a ser referência permanente – é a representação mais próxima daquilo que o artista buscava naquele processo. A obra entregue ao público é tomada como elemento unificador. O significado de todo material relativo aos processos criadores brota na relação estabelecida com a obra considerada final, que atua como o ponto de referência para o acompanhamento das decisões do artista ao longo do percurso. As pinturas mostradas publicamente são, assim, parte integrante de seus processos de criação.
Na medida em que a obra é reintegrada ao movimento de seu processo de construção e carrega consigo as incertezas e a permanente possibilidade de mudança que marcam sua construção, relativiza-se a obra como verdade final sedimentada naquele objeto envolto pela aura da perfeição. As considerações de uma estética atada à noção de perfeição e acabamento defrontam-se com a obra balbuciante e inacabada. Esta visão da obra de arte passa, assim, a dialogar com as ciências que falam de verdades inseridas na continuidade de seus processos de busca e, portanto, não absolutas e finais.
Ao observar a obra de Senise sob a perspectiva de seus processos de construção, estaremos lidando, em muitos momentos, com o transitório, o frágil e o hesitante. A obra não é mas vai se tornando, ao longo de um processo que envolve uma rede complexa de acontecimentos.
Livros de Daniel Senise
Os livros de Senise são suportes móveis de registros de toda ordem. São de tamanhos variados, apontam para uma marcante mobilidade e, embora não tenham periodicidade de acesso e uso, têm registros em diferentes espaços geográficos. O artista, aparentemente, leva um caderno em viagens, por exemplo, para anotar de forma assistemática ao longo do tempo. Assim como Klee considera seus diários, os livros de Senise são obras do tempo.
Ele utiliza esse espaço de armazenamento para fazer reflexões diversas e preservar informações sobre aquilo que captura do mundo a sua volta, por meio de anotações verbais e visuais. Encontramos, assim, lembranças, registros de sonhos, pensamentos sobre arte, discussões sobre o ato criador, reflexões sobre a pintura, experimentação de imagens, questionamentos sobre projetos e sobre obras já expostas. Em uma primeira impressão, trata-se de um objeto fragmentário e bastante heterogêneo. No entanto, ao longo da leitura, os livros vão se mostrando como formas de mediação entre a obra e o mundo que envolve o artista e seus gestos criadores. Os (agora) aparentes fragmentos ganham unidade, quando passam a ser relacionados. São observadas certas recorrências nestes índices do modo de ação de Senise. Há algumas formas particulares mais significativas em sua atividade criadora registradas nos livros, que serão discutidas a seguir.
Espaço do talvez
Os livros registram uma profusão de imagens que ainda se encontra em estado provisório ou em condição de passagem. São traços frágeis – sem preocupação gráfica típica das formas de comunicação interpessoal – que mostram uma série de figuras sempre desenhadas como possibilidades a serem testadas. São hipóteses plásticas ainda pouco vigorosas, como os traços que as configura, que esperam por futuras avaliações por parte do próprio artista. Imagens se repetem mas sempre ainda nesta condição experimental e de transitoriedade. Em muitas páginas dos livros paira o tom da dúvida e da incerteza; daí, a definição dos livros como o espaço do “talvez”. E foi em uma espécie de confirmação desta sensação, que eu tinha em relação a estes momentos do caderno, que encontrei uma página com as seguintes anotações: “Talvez não usar toda a tela” e “Usar a cor terra plena. Mancha out-line. Talvez no elefante”.
Apontamentos para tendências
Tendo as obras em mente, algumas imagens dos livros são aparentemente rejeitadas, ou coaguladas, como fala Louis Hay (1990) sobre anotações que não são absorvidas por nenhuma obra ou, ao menos, ainda não foram aproveitadas até aquele momento. No entanto, muitas outras imagens ganham consistência ao longo do tempo e são, assim, levadas para fora do ambiente dos livros e passam a fazer parte de alguma obra. É neste sentido que os livros abrigam anotações, inseridas em um ambiente de incerteza como vimos, mas que tendem para pinturas. Nestes casos as imagens encontram nos livros um espaço de elaboração e maturação para pertencer a obras futuras.
Os livros de Senise vão além de um lugar de registro de nascimentos de obras, estabelecem uma rede de relações bastante complexas com suas pinturas. Tais relações nos afastam de uma visão linear do ato criador, ou seja, insights arrebatadores e definitivos anotados que são, em seguida, concretizados em telas. Suas anotações disseminam-se pelas suas obras ao longo do tempo e são aproveitadas de modos diversos. Os livros preservam muito do tempo da criação – tempo de maturação feito de seleções, de tomadas de decisão e de elaboração em diferentes níveis, como as ilustrações mostram.
Estas anotações visuais mostram possibilidades de fragmentos de obras, que depois passam por uma elaboração de natureza plástica, quando transportados para telas.
Vamos dar continuidade à tentativa de melhor compreender a natureza da relação entre livros e obras de Senise.
Adensamento de textura
A pintura como processo sempre foi alvo de atenção de críticos da obra deste artista. Seus trabalhos, não pintados mas construídos (Gabriel Pérez-Barreiro), mostram densidade física e temática em intensas elaborações da superfície. Observa-se que é impossível reconstruir em sua plenitude este processo de elaboração, assim como não é fácil reconhecer os materiais empregados (Dawn Ades).
As telas de Senise carregam consigo um processo criador público feito de adição de objetos e camadas que, interferindo um sobre o outro, sustentam sua textura, marcada pela busca incessante de novos materiais. As próprias anotações de Senise apontam para a importância que ele dá à “fisicalidade da pintura” que implica em procedimentos de exploração das “propriedades físicas do quadro” e na “discussão da superfície” da tela.
A leitura dos livros do artista, por sua vez, desnuda um processo privado onde camadas de um pensamento criativo em ação adensam a textura de suas telas.
Projeto poético
Há, nas anotações, momentos de construção do pensamento de um artista em plena atividade criativa. As dúvidas, aqui, são menos marcantes e abrem espaço para uma superposição de reflexões sobre arte e arte contemporânea, mais especificamente, e sobre sua própria pintura que vão dando sustentação”teórica” para as discussões que as telas apresentam. Estas anotações nos remetem ao uso que o artista faz do termo livro para estes documentos estudados, na medida em que é clara a “perenidade” destas reflexões, que são ampliadas e ganham maior complexidade ao longo do tempo.
Nestes instantes o pintor faz uso pleno da palavra, mostrando, muitas vezes, preocupação no modo de expressão destes pensamentos, como algumas rasuras em busca de palavras mais adequadas deixam transparecer. É interessante observar que nestas reflexões verbais português e inglês se misturam, muitas vezes, sem critérios aparentes. Imagem e palavra se complementam – sem nenhuma forma de hierarquia – e atuam na formação de um universo conceitual singular. Os livros abrem espaço para a construção e sistematização do projeto poético do artista que, de certo modo, direciona todas suas obras.
Este projeto não é claramente conhecido por ele, mas define-se enquanto as obras vão sendo executadas. Não se trata de princípios pré-estabelecidos. Os livros parecem ser um dos meios através dos quais o artista aproxima-se de seu grande projeto, marcado pela unicidade. Comentários sobre obras já expostas, por exemplo, parecem funcionar como forma de conhecimento deste projeto geral do artista. Os livros mostram-se como auxiliares de Senise em seu processo de conhecimento daquilo que é sua pintura e de como ele se vê como artista. As anotações são, nestes instantes, responsáveis pela explicitação de fios condutores de natureza ética e estética que atam as obras até ali construídas. Estas discussões, que o artista trava com ele mesmo e registradas nos livros, preservam, também, marcas da relação do ambiente cultural e histórico que envolve os processos criadores das obras.
Há algumas questões, que estarão sendo detalhada a seguir, que funcionam como sustentáculos deste projeto poético em construção.
Força da imagem
Nestas reflexões sobre alguns dos princípios direcionadores do trabalho de Senise percebe-se uma característica bastante marcante por sua recorrência em diferentes momentos dos livros, sob diferentes perspectivas, assim como pelo vigor como é sempre apresentada: trata-se de sua crença na força da imagem. “Eu acredito na pintura, melhor, na imagem, com toda convicção. Para mim o problema não é se há mentira ou não. Para mim a imagem é verdade indiscutível. Solar”.
Ao pensar naquilo que ele chama de elementos que são essenciais para o seu trabalho, surge uma resposta: “o mistério da imagem” – considerando não ser esta a definição melhor e mais elegante.
A força da imagem já está presente na percepção deste artista, como fica claro quando ele faz menção a recordações: “Sempre tem uma imagem (de um momento predominante que 1) preenche a memória 2) e desativa o desejo de procurar outras imagens do mesmo título”. Seu processo de apreensão dos fenômenos sustenta-se em imagens com recorte, enquadramento e angulação singulares.
No que diz respeito, ainda, à percepção de imagens, podem-se notar algumas tendências no modo como se dá a captura do mundo por este artista. Encontramos, por exemplo, um grande número de pessoas – homens, mulheres e crianças – em desenhos ou recortes em perfil. São as silhuetas, tão presentes em suas obras, que já se encontram em sua apreensão do mundo, que já é uma atividade criadora.
Senise percebe, em algumas de suas telas em criação, a primazia da imagem: “no ‘beijo do elo perdido’ (talvez este seja o título) o que comanda é a imagem”. Ele explicita, em outro momento, imagens que sempre evitou, como faces, flores, vulcões, órgãos genitais, máquinas, cidades e roupas.
Esta força da imagem é também observada em alguns de seus sonhos anotados, como naquele registrado em outubro de 1992, onde descrições incertas de uma cena (como na maioria dos relatos de sonhos) são condensadas em uma imagem, que é, possivelmente, geradora de obras em 1994: aviões se transformam em bumerangues.
“O avião começou a fazer manobras de aproximação sobre um mar cheio de pequenos barcos com cabine. (…) O avião ia fazer um pouso de emergência na água. Já não era mais um avião e sim duas longas asas tipo bumerangue.”
E a imagem do bumerangue segue sua história nos livros.
Arte e artista
Neste ambiente no qual reina a imagem, Senise faz reflexões sobre a arte e o artista contemporâneos e, de modo mais específico, sobre sua pintura.
Caminhemos por suas anotações para apreendermos algumas destas considerações.
“Se eu imagino a arte como um fazer cujo método incorpora ‘o consciente e o submerso’ e que portanto não necessita se justificar porque a natureza não justifica a sua presença. Ela é. Se imagino que o compromisso do artista não é somente com a razão surgem daí alguns problemas:
1) Qual será então o ‘modelo’ do criador ?
2) Quais serão os ‘parâmetros’ do artista para construção do seu conjunto representativo ?
3) A obra pode ser contemplada sem contexto (sem história) ?”
Como pode se perceber, nos questionamentos estão inseridas algumas respostas.
“O que determina um ‘objeto’ [evento/fato/imagem] ser uma obra de arte? Dois fundamentos visíveis e mensuráveis”, que Senise resume em contexto e linguagem. Estes itens são desenvolvidos. “Obras fundamentais transportam consigo no tempo estes dois fundamentos” (…) “no seu organismo e não na sua aparência”.
“O artista de hoje retoma o questionamento pré-moderno incorporando os sistemas e estratégias da arte moderna”. Ele também associa este procedimento à ciência contemporânea. E prossegue estabelecendo relações com leituras feitas: “Numa mostra do esgotamento da estratégia de vanguardas é a opção de tantos artistas contemporâneos por temas sociais/raciais/étnicos, por “problemas sociais contemporâneos”. Manifestos de minorias oprimidas etc… (que Robert Hughes chama de Cultura da Reclamação)”.
A arte contemporânea é, na maioria das vezes, pensada em relação à arte moderna: “A arte moderna conviveu com seu registro (com sua história). Se confundiu com sua história – o seu tempo é linear evolutivo. A arte moderna acabou e um tipo de história da arte acabou também porque a arte moderna se confunde com sua história. A estratégia da arte moderna não serve mais. Portanto existe um tipo de história da arte que não serve mais para se pensar a arte”.
Esta preocupação de se refletir sobre a arte contemporânea invade sua atuação em sala de aula: “A minha parte no curso proporá uma reflexão, através de exercícios práticos sobre os princípios contemporâneos que influenciam a criação bidimensional”.
Sua pintura
Nas discussões sobre sua pintura, Senise conclui, por exemplo, que não pinta para “contar uma his/estória. Pinto para contar/passar/expor uma impressão”. O que nos remete ao poder da imagem, agora, responsável por uma impressão. Ao observar novos procedimentos, por ele selecionados, a arte moderna volta como termo comparativo. E assim, chega à sua pintura, ao menos como ele a via naquele momento de sua vida: “Quando passei a colar a tela no chão estava também me desligando de um fundamento moderno. A minha pintura poderia ser vista mais como um objeto (ex: sudário) do que como pintura”.
Ao mesmo tempo em que os livros de Senise registram preparações de montagens de futuras exposições, oferecem, também, oportunidade para ele refletir sobre exposições já terminadas.
Ele percebe, por exemplo, questões em comum em duas exposições e que “evoluiu o tratamento de pregos/ferrugem (tratamento/tema?)”. E pensa na próxima: “1) desenvolver o tema/formal; 2) pesquisar tratamento-tema ?; e 3) juntar a idéia do tema (1) com o tratamento-tema (2)”.
Obras específicas passam também por avaliação que tem como critério a relação com suas outras obras. Por exemplo, em 2 de fevereiro de 1994, Senise anota: “A tela das panelas é um trabalho único – pontual. E a presença dela no projeto da exposição está atrapalhando o “processo”. Algumas semanas depois a tela é re-avaliada: “A tela das panelas da qual tanto me orgulhei há pouco mais de um mês, agora já não me causa encanto. Sinto que é um pequeno apêndice no meu trabalho […] Não permite divagações. É o que propõe”.
Os dípticos são também discutidos verbal e visualmente: “Não é o gap entre 2 thoughts. O gap fica entre as 2 telas. O gap é de 3cm/5cm. São 2 imagens. O que surge delas”.
Sudário
O papel desempenhado pelo binômio sudário-memória em sua obra ocupa um espaço bastante amplo nas reflexões de Senise, sobre a identidade de sua pintura. São diferentes posicionamentos, às vezes, até contraditórios que acompanham sua descoberta, em determinado momento, como um princípio direcionador da construção de suas telas.
Aqui estão algumas destas reflexões. Primeiro, vejamos o que é sudário ó memória para Senise:
“Sudário e memória não são dois temas mas dois pólos que estabelecem uma relação da pintura (plástica portanto física) com uma questão humana (memória)”; “O sudário é o registro de um evento. A pintura como sudário é ao mesmo tempo a representação e o objeto”.
O binômio é tomado como fio condutor, com consciência das vantagens e desvantagens, como uma tentativa de compreender a qualidade de memória que está presente em grande parte de sua produção artística.
“Uma questão que vou desenvolver no meu trabalho é a do sudário”.
“Estabelecer o princípio sudário ó memória como objeto de especulação do meu trabalho poderá me facilitar as coisas no sentido de que quando estiver projetando/processando um novo trabalho e estiver meio atolado poderei em vez de buscar as características formais do(s) último(s) trabalho(s), especular sobre as relações que este novo trabalho tem com o princípio sudário ó memória.
Isto poderá resultar em trabalhos formalmente mais diversificados a partir do momento que o novo trabalho se encaixe convincentemente no princípio s ó m. ”
Sudário-memória parecia, em determinado momento, um espaço de liberdade ou possibilidade infinita para o artista; mostra-se, depois, como um possível limitador do processo criador, como veremos a seguir.
“Este procedimento de acessar o tema/objeto sudário ó memória como estratégia de realização da obra pode incorrer em alguns perigos iminentes.
1 – Se tornar um processo burocrático, daí resultando em imagens ilustrativas de uma idéia totalmente clara. E isso é o que eu não quero. Para isso ser evitado acho que o correto é eu continuar trabalhando do jeito que eu trabalho e quando surgir alguma imagem nova examiná-la nesta grade sóm e ver como que ela se comporta.
Entretanto o fato de ter chegado a esta síntese temática sóm tem a vantagem de eu a partir de agora poder trabalhar de uma forma menos perdida, menos especulativa, com mais método. A chave para que isto aconteça é eu acreditar plenamente que o princípio sóm está em todos os trabalhos que fiz até hoje e que se continuar trabalhando do jeito que tenho trabalhado todos estes anos continuaria chegando a resultados equivalentes, i.é relacionados ao sudário ó memória.
Uma atitude para solidificar esta “crença” (de que este tema é meu objeto queira ou não queira) é individualizar, personalizar esta preocupação.
Estabelecer que o meu princípio de trabalho é a memória e o registro (plástico) da memória por uma razão natural e que isto vale como fundamento para uma obra.
2 – O segundo risco de estabelecer minha obra em torno da idéia da memória e do seu registro (plástico) é de isto não acontecer efetivamente, e ser apenas discurso para uma série de trabalhos frouxos. (Nunca saberei medir o quanto isto estará sendo efetivo)”.
“Depois pensei também que um grande tema do meu trabalho é o duplo/ou o gêmeo/ou o refletido / ou o simétrico. E por isso é uma tolice achar que todo o meu problema pode ser localizado no ‘binômio’ ‘sudário – memória’ “.
“Há um certo tempo, porém, tentei definir o que fazia através de um conceito ‘sudário-memória’ que não soube nem formalizar muito bem. Depois esqueci o binômio … Ficou como um dispositivo exaustivamente projetado para uma determinada função e que depois […] foi abandonado sem nenhum sofrimento”.
O binômio sudário ó memória teve, portanto, papel relevante no processo de Senise enquanto agia como um organizador de obras já realizadas, ou seja, um meio de dar unidade a seu trabalho e, assim, as pinturas não serem vistas como obras dispersas e isoladas. O binômio parece ter sido abandonado quando se revelou como limitador – uma espécie de impedimento da continuidade do processo – que deixa, no entanto, marcas indeléveis, como o próprio sudário, em sua obra.
Processo de criação
Os apontamentos de Senise abrigam também reflexões sobre alguns aspectos que envolvem seus procedimentos de criação.
Tendência
Algumas anotações deixam transparecer a tendência de seu processo: permanente conquista de algo, não podendo cair em um processo burocrático de, por exemplo, repetir soluções formais já encontradas.
Ele anota que “pintar um quadro ou mais genericamente que pintar é ter que conquistar algo. Ou invertendo um pouco: existe ‘algo’ a ser conquistado. Este é o ponto. Existe algo a ser conquistado”. Esta concepção do processo como conquista é discutida em oposição à “burocracia da pintura”, que é ligada, por sua vez, à repetição de procedimentos e à tomada da relação sudárioómemória como estratégia de realização de futuras obras como meras ilustrações deste binômio, como vimos acima.
A necessidade de conquistas novas é expressa em outra anotação: “A série ‘Ela que não está’ esgota aquela solução formal. Essa é a minha natureza, a natureza do meu trabalho. O próximo terá uma solução nova”.
Comunicação
O aspecto comunicativo da arte aparece em várias anotações como naquela já apresentada anteriormente na qual Senise diz pintar para contar, passar ou expor uma impressão; conta-se, passa-se ou expõe-se uma impressão para alguém. Há outras anotações onde esta mesma questão é levantada: “Tem se discutido a perda da comunicação entre a produção artística e a comunidade. Esta é uma preocupação minha. Por isto adotei a pintura mais do que nada (a pintura tem uma funcionalidade já absorvida).”
Experimentação verbalizada
Senise narra a procura por procedimentos adequados para a construção de determinadas obras. Ele anota em 1991: “O último quadro que pintei no Rio tenta escapar (um pouco) do processo de decalque … um pouco – porque eu ainda numa última etapa colei e descolei a tela na parede. O quadro ainda não tem nome mas é dedicado ao beijo do elo perdido com a ela perdida”
“Estive praticamente parado/estagnado nestes últimos 40 dias. Nada evoluiu. As imagens do Giotto não estão saindo. Estou tentando duas opções de apresentação para elas: uma com a ‘casinha repetida’ três vezes em materiais diferentes. A outra como eu chamo o ‘altar’, com a casinha no meio e duas telas de pontos, uma em cada lado. Não me convenço do valor destes trabalhos.”
Mais adiante, neste mesmo caderno, Senise continua procurando uma solução formal para a série de telas sobre a casa de Giotto e pensa em adotar a estratégia de “começar telas pelo fundo novamente. Isto é. Experimentar materiais. Voltar aos velhos métodos”.
Alguns dias depois ele registra: “Hoje ‘resolvido’ o problema das telas do Giotto. Vejo que o problema era o fundo”.
Lógica do acaso
Discutindo, ainda, as marcas do processo criador deixadas nas anotações de Senise, há a questão do acaso. A leitura dos livros de Senise nos coloca frente a frente com a ação do artista na busca cautelosa por objetos e imagens, neste processo de elaboração acima discutido. Objetos e imagens que são, deste modo, procurados e não achados ao acaso. Isto nos leva a pensar sobre o papel do acidental em seu processo criador. A ação do acaso é, muitas vezes, percebida ao longo de percursos de criação – momentos de evolução fortuita do pensamento daquele artista. A rota é temporariamente mudada, o artista acolhe o acaso e a obra em progresso incorpora os desvios. Depois deste acolhimento, não há mais retorno ao estado do processo, no instante em que foi interrompido. Não há como evitar esta intervenção na criação artística, assim como em outros processos.
No entanto, falar do acaso no processo de Senise vai além dos limites da ingênua verificação da entrada, de forma inesperada, de um elemento externo ao processo. Os livros deixam transparecer que, por um lado, o artista, busca o acidental, podendo falar nos acasos “construídos”. As anotações agem, em muitos momentos, como se fossem formas de planejamento do acaso, por mais paradoxal que isto possa parecer.
O artista coloca-se, nesses casos, em situação propícia para a intervenção de objetos externos. Há, sob esta perspectiva, uma espera pelo inesperado. Por outro lado, a absorção dos resultados do acaso depende da qualidade do que oferecem: passam por avaliações do artista: “É necessária a minha participação (física) neste acidente (como pintor). Não é um ‘objeto achado ‘”, como discute Senise em uma de suas anotações. É neste sentido que podemos falar em acaso com uma lógica interna ao ato criador deste artista, que nos fazer repensar o acidental nestes processos, aqui, discutidos e que deixa suas marcas pessoais no tratamento dado ao inesperado.
Na tentativa de compreender melhor a relação entre livros e obras de Senise, vimos que a textura de suas telas é adensada por reflexões sobre várias questões que envolvem seu projeto poético e seu processo criador e que, de certa forma, sustentam as opções que as obras apresentam.
As telas de Senise, como já mencionei, deixam transparecer um trabalho de experimentação permanente que, ao expor a olho nu a natureza investigativa da arte, a aproxima de modo irrecusável da busca científica. A leitura de seus livros os mostra como testemunhas de outro ofício: um complexo trabalho em diferentes níveis, que estarei discutindo, sob outros ângulos, a seguir.
Fortalecimento de imagens
Discuti, anteriormente, a força da imagem como um dos fundamentos do projeto poético de Senise. Gostaria de dar especial atenção à importância de seus livros no processo de fortalecimento de imagens ao longo do tempo.
O artista dedica muitas páginas de suas anotações à história das imagens que só mais tarde receberão tratamento pictórico. São momentos de reflexões visuais em preto e branco, em sua maioria, que parecem preparar imagens, de origens diversas, para serem transportadas para futuras telas a cores. Esta história é visualmente narrada, passando por uma seleção inicial que elege e captura algumas imagens dentre a amplitude da oferta no mundo com o qual o artista se relaciona.
Senise é, por algum motivo, provocado por umas imagens e não por outras. O que fica claro é que a provocação causada não basta: percepção, memória e imaginação a trabalham dando origem a uma imagem com força maior do que qualquer outra, que afeta com maior intensidade a sensibilidade do artista, tornando-a passível de entrar em suas telas.
Algumas destas imagens, selecionadas em algum momento, ganham vigor ao longo deste processo de análise que se expressa por uma repetição maior nos livros e na ação do artista de levá-las para as telas. Novas seleções, que acionam critérios eminentemente pessoais, são, assim, feitas.
Estes desenhos, embora tenham a aparência de esboços ou desenhos preparatórios, não cumprem a função de preparar telas, mas parecem agir como modos de preparar ou elaborar imagens. Não há preocupação aparente em precisão gráfica ou em maior adequação da imagem, como são encontradas em esboços que preparam obras, ainda que sejam também caracterizados por esta fragilidade ou precariedade do traço.
As imagens escolhidas são meticulosamente analisadas por meio de uma incansável multiplicação. Cada vez que a forma é desenhada, o tempo passou e ela já não é mais a mesma. Diferentes posições, ângulos e combinações servem para o artista ir melhor conhecendo-as e ir avaliando-as. A criação de Senise é, sob esse ponto de vista, conhecimento obtido por meio da ação. No ato de justaposição de um grande número de aparentes repetições, as imagens acumulam experiência e significado, ganhando consistência no âmbito do projeto poético do artista.
Uma anotação de Senise sobre seu trabalho nos auxilia a pensar sobre esta relação de contigüidade entre imagens dos livros: “posso dizer que o meu trabalho é a justaposição de duas coisas para fazer uma terceira.” Das justaposições dos desenhos, na “tensão entre duas figuras” vão surgindo terceiros.
O processo de elaboração destas anotações visuais conduz a procedimentos que não podem ser descritos como uma elaboração sucessiva de fragmentos. A construção de cada imagem age dialeticamente sobre a outra. Seus livros deixam vestígios de um trabalho bastante singular com estas anotações: em um primeiro momento, cada imagem atua sobre o todo que as páginas dos livros oferecem. Quando essa imagem é retomada em outra página, insere-se em um novo contexto. Este procedimento demonstra que o interesse do pintor está centrado, nesta fase do processo, mais na imagem propriamente dita do que na composição na qual se insere. Quando forem levadas adiante, estas imagens-fragmentos passarão a integrar um novo contexto e, conseqüentemente, novas relações com o todo que a obra oferecerá.
O prego é um exemplo de imagem forte do universo imaginário do artista. É interessante observar que se trata de uma figura que atua, ao longo do tempo, tanto de modo isolado, assim como sobre outras imagens, também bastante recorrentes, como nuvem de fumaça, cérebro, mãe do artista e, naturalmente, martelo. O prego, tão elaborado nos livros, é levado paras as telas de Senise como imagem e, quando enferrujado, como memória de sua materialidade.
Cada novo desenho não apaga os anteriores, mas parece ser contaminado pelos outros e está, assim, impregnado de sua história no processo criador de Senise. Há um adensamento de significado e natural perda de referencialidade externa ao mundo ficcional. Há, como se percebe, uma ampla elaboração das imagens um dia emprestadas do mundo externo ao processo criativo. Seus livros mostram um vocabulário pessoal de imagens que vão ampliando suas definições em cada novo desenho e mostram, também, um jogo de associações visuais, semelhantes ao procedimento adotado nos dípticos e polípticos e a outras séries de associações verbais encontradas nos livros. Acompanhemos um exemplo:
elo perdido pregos tempo alguém que fica e não volta
alguém que nunca vai – que vai e volta
como o símbolo do infinito
como o ciclo da água
como os carros no trânsito
como as viagens internacionais
como os cães – os primitivos
como o pensamento inconclusivo
como o dinheiro
como o vento – como a roda
as cabeças cortadas são personagens tão simpáticas
como os elefantes
como as formas das nuvens
como os gestos não calculados
O campo ausente do sudário, discutido na obra do artista, é preparado, nos livros, na presença de imagens. Os livros são, assim, o espaço onde algumas representações gráficas ganham consistência ficcional. Este é o processo pelo qual passam muitas das imagens que se tornam paradigmáticas no trabalho de Senise. Os livros, neste sentido, engendram matrizes que apontam para futuros mundos pictóricos possíveis.
É nas páginas dos livros que vai se compondo o universo imaginário de Daniel Senise. As anotações oferecem uma exposição do imaginário do artista que vai sendo traduzido em telas. Seus livros são seu sótão bem particular onde “restos” são elaborados, como uma de suas anotações apontam: “a minha paisagem não contém nada além de restos. É um sótão com objetos pessoais” – “restos de memória, de cultura – que vieram parar na minha praia-sótão”.
Este espaço de armazenamento e elaboração de imagens guarda também algumas que, por algum motivo, não são levadas adiante – não passam pela seleção do artista, como discuti anteriormente. Poderia selecionar algumas páginas dos livros que ilustram este fato observado.
A crença na imagem professada por Senise é, assim, reforçada por estes percursos preservados nos livros, marcados pela dedicação a muitas delas, e pelo processo de seleção e fortalecimento de algumas.
Não há dúvida de que a vitalidade criativa dos livros amplia o espaço de ação de Senise e muda a materialidade de suas pinturas, ao tornar mais espessa ainda sua trama. Seus livros nos levam a sentir e ver a atividade da mão criadora respaldada pelo desejo do artista e pelas reflexões que sustentam suas obras.
BIBLIOGRAFIA:
ADES, Dawn. “Daniel Senise: Vestígios”. Em Senise, Daniel. Ela que não está. São Paulo, Cosac & Naify Edições, 1998.
BARREIRO, Gabriel Perez. “Construções sobre a pintura”. Em Senise, Daniel. Ela que não está. São Paulo, Cosac & Naify Edições, 1998.
HAY, Louis. “L’amont de l’écriture”. Em Hay, L. (org.) Carnets d’Écrivains. Paris, Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1990.