Entrevista de Daniel Senise a Brett Littman The Drawing Center New York
Brett Littman: Você é considerado um pintor, mas para mim a base do seu trabalho sempre foi a impressão e a colagem. Você poderia descrever seu processo e explicar como vê sua investigação sobre a pintura?
Daniel Senise: Acho que estou estudando a ideia do que é ser pintor hoje em dia. Comecei a pintar na faculdade de arte, mas depois percebi que o que me interessava não era a materialidade da pintura. Sempre me interessei mais pela imagem do que pelo processo da pintura. Mas como eu trabalho com as mãos, utilizo materiais e trabalho com painéis, não me im-portei em ser chamado de pintor todos esses anos. Talvez esta seja a melhor maneira de descrever o que eu faço.
BL: Em que momento você abandonou os pincéis e a tinta e começou a criar suas imagens construídas?
DS: Fiquei sem estudar arte durante muito tempo. Comecei
a pintar em meu ateliê na década de 1980 e três anos depois estava expondo na Bienal de São Paulo, então eu ainda estava descobrindo como pensar meu trabalho. Naquele momento, eu não pensava em algo externo ao processo de representação. Eu representava coisas, construía coisas, imagens do meu ambiente, minha vida. Eu usava tecidos muito finos e às vezes trabalhava diretamente sobre o chão. Um dia, virei o tecido do avesso e, para minha surpresa, ele tinha incorporado a imagem do piso e outros detritos do ateliê. Essa imagem era tão im-portante para mim quanto a imagem original na parte frontal do tecido – e a partir daí comecei a trabalhar com ambos os lados. Usei esse processo por cinco anos e não sabia bem o que fazer com os tecidos impressos, até que em 1992/1993 percebi que essa forma de criar impressões de pisos e de pregos enferrujados era muito pessoal e profunda para mim. Ela permitia que eu me representasse utilizando meu entorno físico imediato. Posteriormente, decidi criar um arquivo desses tecidos com impressões de superfícies e condições do mundo real e usá-los para criar ilusões ou representar imagens.
BL: Para você, havia alguma semelhança entre a ideia da implosão do mundo real dentro da imagem e os Combines de Robert Rauschenberg, ou as assemblages de Jasper Johns?
DS: Eu tenho um amigo, um pintor norte-americano. Ele me disse, “Esses tecidos impressos são fantásticos. É só pendurá-los na parede”. Eu disse a ele, “Você é americano. Eu sou brasileiro. Sou muito mais barroco”. Acho que a filosofia de trabalho de Robert Rauschenberg é de certo modo mais técnica, e definitivamente menos barroca. Acho que a minha filosofia é diferente, é muito mais europeia, de certa forma. Eu penso em como vou fazer algo e depois misturo tudo. Não sou muito bom em respeitar limites.
BL: Gostaria de falar sobre seu arquivo de tecidos. Quando exatamente você começou a acumular esse arquivo?
DS: Quando comecei a fazer impressões de pisos e a colecionar pisos, eu estava morando no Brasil, mas vinha muito aos Estados Unidos. Eu tinha mais opções de pisos de madeira nos EUA porque aqui o clima é mais seco. Eu ia muito a Connecticut, onde encontrei grandes edifícios vazios e imprimia os pisos desses espaços abandonados.
BL: Algum desses desenhos de pisos é de algum edifício histórico ou possui significado histórico?
DS: No ano 2000, quando decidi representar espaços por meio dos pisos, a grande questão para mim era representar ou não os locais aos quais pertenciam os pisos. Depois de ponderar muito, decidi não ser tão específico, porque não queria incluir tanta sociologia, antropologia ou história em meu trabalho. No entanto, houve ocasiões em que eu quis representar um lugar específico. Um desses lugares foi o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, no Rio. Usei um tapete para representar pássaros específicos que vivem naquela região. Ao término da exposição, o trabalho acabou permanecendo no museu – o que foi ótimo, já que a obra é tão específica àquele ambiente. Em 2004, quando voltei ao Brasil após passar quatro anos morando em Nova York, comecei a usar todos os tecidos
que havia impresso nos EUA. Assim, por exemplo, quando eu representava um piso grande de parquet em meu trabalho, cada pedaço de tecido que eu usava vinha de um lugar diferente. Para mim, era como se houvesse uma série de pessoas diferentes em cada trabalho – cada pedaço de tecido recortado tinha sua própria qualidade. Foi uma descoberta muito libertadora, que certamente levou meu trabalho em novas direções.
BL: No geral, você parece ter um forte ímpeto colecionador….
DS: Sim, é verdade. Fui a Paris com minha família em 2000 e pedi a um daqueles sujeitos à beira do Sena que recortasse uma silhueta da minha filha. Observei ele dobrar o papel, recortar a silhueta e em seguida descartar os restos de papel. Fiquei muito interessado nos pedaços de papel descartados, então combinei com um grupo desses caras que compraria 2 mil pedaços de papel – então, agora tenho um arquivo de 2 mil pessoas que foram a Paris e tiveram sua silhueta recorta-da. Há uma semelhança com os tecidos – mas ainda não sei o que fazer com os papeis, então pode ser que eles fiquem em meu ateliê por 16, 17 anos até que eu descubra o que fazer com eles. Uma coleção que usei recentemente era de convites e catálogos de exposições antigos, que triturei para fazer celulose e usei em uma nova instalação e em diversas obras de parede.
BL: Gostaria de falar de um conjunto de obras mais recentes suas intitulado Biógrafo. Sei que você iniciou a série após a morte de seu pai e que pretende criar 85 trabalhos para ela. Esta série me parece um tanto aberta e, de certo modo, ela parece tratar diretamente de algumas circunstâncias infelizes da vida. Nós abriremos a exposição na Nara Roesler com os três trabalhos mais recentes da série Biógrafo. Há algo que você considere particularmente interessante ou inovador nestes trabalhos?
DS: Meu pai era piloto. Nas décadas de 1950 e 1960, quando viajava a trabalho, ele tirava fotos. Após sua morte, herdei um arquivo gigantesco de fotografias que eu nunca tinha visto. Ele voava para a Amazônia e para a Europa, portanto o leque de imagens e de tipos de pessoas era bem amplo. Vendo
as fotos, percebi que não sei quem são aquelas pessoas ou onde as fotos foram tiradas. Além disso, meu pai, que era uma pessoa difícil e nunca falava sobre essas fotos, não está mais aqui para responder a essas perguntas. Minha maneira de processar essas imagens em meu trabalho foi criando a série Biógrafo. As obras da série são compostas por um retângulo dentro de outro – isso me permitiu trabalhar a ideia do original e sua representação.
BL: O retângulo é uma referência a uma foto impressa?
DS: Não, porque na verdade a câmera dele tirava fotos quadradas. Embora as fotos tenham dado origem ao projeto, me fazendo pensar na vida de meu pai, o trabalho não está diretamente relacionado ao que meu pai fazia. Acho que o retângulo dentro de outro retângulo é um formato visual que me permite coletar e analisar informações durante um longo período de tempo. Para mim, esta série trata de encontrar sentido em coisas que ainda não sei.
BL: Eu gostaria de descrever formalmente o processo de criação de um Biógrafo. O retângulo menor tem sempre o mesmo tamanho e os painéis de alumínio também são uni-formes. Em alguns casos, você gira o painel sobre a mesa para poder construí-lo sob muitas perspectivas diferentes. É mais ou menos isso?
DS: Sim. Essa é uma boa descrição básica. Mas quero observar que se giro os trabalhos ou não, isso depende do que estou tentando ver e representar. Se estou criando uma matriz, posso girar o painel para obter várias orientações simultâneas. Se estou tentando fazer um chão e uma parede, trabalho em uma só posição. Acho que esses trabalhos são uma espécie de problema visual que preciso solucionar, uma espécie de jogo para o qual essencialmente, no final, terei encontrado 85 soluções.
BL: Um dos temas que investigaremos nos demais trabalhos
da exposição é a tensão entre fazer e desfazer em suas obras mais recentes. Eu queria tentar contextualizar isso falando sobre dois trabalhos anteriores seus que eu acho que esclarecem as tendências estéticas mais redutivas de sua produção desde 2011. O primeiro trabalho sobre o qual quero falar é a instalação de grandes dimensões 2892, que data de 2011. Poderia me falar um pouco mais sobre esse projeto e esclarecer qual era seu raciocínio quando o criou?
DS: Quando criei 2892, estava pensando na pintura, na representação, nos restos e nos mantos. Em 1992, imaginei duas telas grandes frente a frente – com um lado feito de lençóis que retirei de uma UTI de hospital e o outro de lençóis que retirei de motéis do Rio. Dei à obra o título 2892 porque calculei que esse era o número aproximado de pessoas que haviam usado aqueles lençóis. Primeiramente, combinei com um hospital
do câncer próximo ao meu ateliê, no Rio, que ficaria com os lençóis usados pelos pacientes e os substituiria por lençóis novos. Depois, combinei a mesma coisa com o dono do motel, que por sinal relutou muito, pois não entendeu muito bem por que eu queria os lençóis usados. Passaram-se doze anos até que eu finalmente expus esse trabalho, provavelmente porque era muito diferente de tudo o que já havia feito. Finalmente criei coragem, depois de falar com um grande amigo meu, que é escritor e crítico e me convenceu a ir em frente e produzir a obra. No final, o período transcorrido entre pensar no trabalho e executá-lo me deu bastante tempo para sintetizar as ideias e saber como transmitir uma mensagem com meu trabalho sem ter contato físico direto com ele.
BL: Este trabalho realmente é diferente, tanto pelo fato de que é um readymade, já que as manchas de sangue, suor e sêmen nos lençóis não foram feitas por você, quanto pelo fato de o trabalho ser quase imperceptível – já que as manchas são quase invisíveis –, então parece que se trata de duas pinturas gigantescas em branco sobre branco.
DS: Sim, essa instalação é meio que um readymade. Mas na verdade eu a vejo como uma obra criada em colaboração com muitas outras pessoas que ou estavam doentes, ou estavam fazendo sexo. É também um trabalho que contém pouquíssima informação visual, exceto pela estrutura de madeira que projetei e construí para segurar os lençóis.
BL: Os outros trabalhos sobre os quais quero perguntar são da série Quase Aqui, iniciada em 2013. Aqui,
você usou um painel de madeira como mesa em seu ateliê, uma superfície de trabalho, recortando e armazenando coisas sobre ela. Com o passar do tempo, houve um acúmulo de riscos, incisões, marcas e escrita sobre a madeira. Depois, você preencheu o centro da madeira com um formato retangular, lixou esta superfície e a pintou em tinta óleo branca lisa com aerógrafo. Ao redor deste espaço vazio em branco, você manteve as marcas como uma espécie de dispositivo de emolduramento. Para mim, esses trabalhos dão a impressão de que você removeu algo deles, ou de que nem os tocou.
DS: Em Quase Aqui eu estava interessado na relação entre as marcas e a superfície branca, que é tão imaculada que nem parecia ter sido feita à mão. Além disso, há um retângulo bem no centro da pintura, onde geralmente está o tema da pintura – então, para mim, esses trabalhos são também, em grande medida, uma meditação sobre a pintura. De certa forma, para mim, 2982 e Quase Aqui ancoram uma atividade mais livre no ateliê. São como ilhas – lugares para onde posso ir e em torno dos quais crescem coisas. Gosto muito dessas séries, porque ficaram muito claras depois de concluídas.
BL: A sua série seguinte, que você inaugurou em 2014, é o que chamarei de “interiores de museus”. Podemos falar sobre Hermitage, que você criou este ano. A série começou como uma imagem muito mais complexa, mas agora você meio que a simplificou, eliminando os pedaços de tecido um a um. Há uma evidente interação entre fazer e desfazer – uma busca pelo equilíbrio ideal entre o máximo e o mínimo de informação necessária para criar uma imagem. É interessante observar a evolução desse trabalho, que começa complexo mas termina com uma sala vazia, sem pinturas.
DS: No ano 2000, criei obras que representavam os interiores de museus. Há seis anos, voltei a elas, mas desta vez as imagens continham mais informação. Cada trabalho desta série implica um processo bastante técnico. Eu preciso escolher cada pedaço de tecido e seu posicionamento no painel. Em Louvre, usei uma impressão de um piso de cimento com pedaços de metal que continha muita informação. Para mim, este tecido era como uma pintura abstrata da década de 50 ou 60 – então o utilizei como material para os interiores das pinturas no espaço. Nesta série, também usei tecidos de parquet com cera vermelha, tinta brilhante amarela ou branca, e acabei misturando esses elementos para obter uma maior profundidade cromática nesses trabalhos.
Mais uma vez, esses trabalhos foram uma espécie de jogo para mim. Agora que decidi retirar as pinturas das paredes do Hermitage, mantendo apenas vestígios de sua presença, acho que o jogo que joguei comigo mesmo acabou e a série está completa.
BL: Eu vejo uma relação muito forte entre 2982, Quase Aqui, Hermitage e alguns dos novos trabalhos criados para esta exposição, principalmente Billboard, Billboard I e Escultura, que são todos de 2016. A gestalt dessas imagens não é completa-mente branco-sobre-branco, mas elas contêm muitos espaços vazios.
DS: De certa forma, um outdoor é uma grande tela que vemos na rua ou na estrada. Eu gosto de outdoors vazios. No Brasil, muitos deles são feitos de metal, com padrões belíssimos, mas sem qualquer imagem. A série Billboard começou com painéis antigos, de quatro ou cinco anos atrás, com amostras de pisos coladas a eles. Juntei esses painéis, recortei imagens do outdoor e as inseri no centro deles. No outdoor, é possível ver todas as marcas de cola. Em seguida, usei os painéis como mesa de ateliê, para que acumulassem mais riscos e cortes. Billboard I é mais complexo. Tem mais a ver com uma coisa que está se expandindo ou passando por uma metamorfose.
BL: Em Billboard I também há uma espécie de caricatura de um rosto, não? Dois olhos, um nariz e um sorriso meio torto.
DS: Sim, eu concordo.
BL: Quero falar sobre os outros três trabalhos da exposição que representam seu ateliê no Rio: Skylight, Night Studio e
A Floresta do Livre Arbítrio. Você me disse anteriormente que seu ateliê aparece em outros trabalhos mais antigos, portanto isto não é algo totalmente novo para você. Ainda assim, parece ser um momento concentrado de pensamento seu sobre esse espaço interior, que eu veria como um pensamento sobre sua própria vida e situação. Você poderia explicar um pouco por que está representando esse espaço interno agora?
DS: Eu poderia começar a responder de muitas formas diferentes, porque há muitas perspectivas diferentes. No início, quando comecei a criar meus próprios trabalhos, como disse, meus temas eram as coisas que me rodeavam. Então, eu representava meu martelo, meus pregos. Era uma forma de elencar todas as razões pelas quais eu faço arte. Acho que se agora estou interessado em ver como pegar o lugar onde estou, as coisas do meu entorno e a luz do ateliê e transformá-los em ação na forma de arte. Essencialmente, o ateliê é onde passo a maior parte da minha vida, e durante grande parte desse tempo estou sozinho.
BL: Acho que este é um momento interessante para você voltar ao ateliê e usá-lo como tema. Night Studio é muito poético, com aquela forma estrelada na janela no canto direito superior da imagem.
DS: Night Studio foi criado reciclando dois Biógrafos com os quais eu não estava satisfeito. O título foi tirado da biografia de Philip Guston escrita por sua filha. The Night Studio trata das agruras de Guston no ateliê. Era um sujeito muito durão, então trabalhava a noite toda, fumando, bebendo café e se digladiando consigo mesmo e com suas ideias. Eu me identifico com esse tipo de neurose.
BL: E quanto às outras duas obras, Skylight e A Floresta do
Livre Arbítrio?
DS: Skylight, de certa forma, tem mais a ver com composição e com maneiras diferentes de representar a mesma coisa. É um trabalho mais técnico no tocante ao movimento. No início, eram duas claraboias na mesma posição em ambos os painéis. Pensei em separar os painéis para obter dois trabalhos independentes, mas no final substituí uma claraboia por uma escada. Acho que isto criou um vetor diagonal forte, que confere à imagem um forte senso de movimento. A Floresta do Livre Arbítrio, para mim, foi como jogar num cassino. Fiz algumas apostas, perdi, terminei com muito pouco dinheiro e joguei tudo na roleta. Aqui o dinheiro, para mim, era a quantidade de tecido que eu retirava da tela. Removi elementos por seis meses até ficar satisfeito. O título tem a ver com o processo. No processo de fazer uma coisa, você tem tantas opções que às vezes se perde e precisa se achar de novo. É preciso apostar mais – correr mais riscos.
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