Daniel Senise
Wilson Coutinho
Texto publicado no catálogo da exposição do artista no Instituto de América Centro Damian Bayón, em Santa Fé, Granada, Espanha, em 1994.
Quando a obra de Daniel Senise surgiu chamava atenção pelo seu teatro fantasmagórico e pela condição de suas metáforas, que impelia o espectador a descobrir um universo em fragmento. Esta fase, inaugurada nos anos 80, chamei-a de “Teatro das Sensações Mutiladas”, devido a especulação sensória que o artista extraía das miudezas do cotidiano, erguendo-as quase como uma força épica. Era um trabalho que determinava para o ambiente artístico brasileiro um novo imaginário, que se o artista dissesse: “o que devo fazer com estes restos de coisas, com este mundo de insignificâncias, jogadas no cotidiano, sem nenhum valor moral, plástico e estético?” Uma obra daquele período atraía: o seu cisne. Baseado num modelo minúsculo, esbranquiçado, quase uma tolice física, que repousava na mesa do ateliê, este cisne de plástico, de dois dedos de altura, era uma bugiganga desprovida de qualquer significação. A figura estava longe de pertencer ao cânone de qualquer proselitismo romântico, uma beleza de jardim da Baviera. Objeto decaído do mundo do artifício industrial, inútil gadget , cuja insolência do tempo, logo o descartaria do reino da vivência e da percepção. Não funcionava nem como uma natureza morta, na medida que o arranjo dela, é feito para o hedonismo pictórico, nem era um objeto neutro de significação visual como um ready-made transposto para a tela como representação. Este minúsculo objeto existindo na ninharia das coisas, transfigurava-se, estendia-se na tela numa imensidão inquietante, perturbadora, quase trágica. Era uma fenomenologia às avessas: não procurava a redução “às coisas mesmas”, mas dilatava à coisa mínima a sua aparência brutal, disforme. Na grande tela, na sua autonomia visual, operava uma cenografia da insignificância. Menos um idealismo da essência, era mais um materialismo da aparência. Com isto, a pintura brasileira ganhava uma inesperada iconografia, um expressionismo perverso e uma fenomenologia negativa.
Pode-se distribuir a arte brasileira em três correntes básicas: a expressionista, que não se alimenta no fundo abismal alemão, mas da predominância da subjetividade, do ego do artista como um imperativo ordenador do imaginário a ser pintado e pela atitude, não necessariamente romântica, do artista deixar a visibilidade de sua marca, sua digital contra o tempo e a morte. A segunda corrente, a construtiva, cuja influência se exerce desde os anos 50, também não segue o padrão do construtivismo russo ou europeu, mas ela integra uma subjetividade particular, tornando sujeito o espaço, subjetivando uma objetividade, de modo que tais obras parecem transversais ao modelo europeu. No nosso caso, não é estranho que haja ressonância da memória, de afetividade em relação aos objetos ou uma densidade existencial. Ela continua a ser construtiva, portanto, baseada em princípios racionais, mas desviante; escultores que buscam a luz (Sergio Camargo) ou o desgaste do tempo em trabalhos com o ferro (Amilcar de Castro). Na pintura pode-se ver ainda três claros procedimentos: uma pintura geométrica atraída pelo jogo da cor – um colorismo geométrico; uma necessidade de sair do plano que faz com que artistas introduzam na tela elementos – colagens, objetos tridimensionais, etc. -para torná-lo mais material e, finalmente, uma pintura que propõe a superfície inteiramente lisa, anti-ilusionista. A corrente fenomenológica, colorista por excelência, procura a identidade do sujeito com o objeto, a ato de pintar associado à percepção. Disto não resulta necessariamente uma pintura de ação, tal como os americanos a conheceram; muitas vezes, ela pode ter um inteligível arcabouço construtivo, mas em tal pintura sujeito e objeto fundem-se na cor, que se depreende como a síntese em relação ao objeto. Estas três correntes dominaram – e dominam ainda – a arte brasileira contemporânea, uma e outra de forma mais ostensiva sobre as demais ou até intercambiando-se, deixando transparecer com mais persistência ora o seu aspecto expressionista, ora o construtivista ou fenomenológico.
A obra de Daniel Senise, que nascera na atmosfera pós-moderna, no sentido que primeiro ele – como muitos da sua geração – estava determinado a pintar, quando, uma década antes, fora decretada a morte da pintura; depois, sentia a presença ultra-sufocante da História e, mais pesado ainda, do intenso historicismo que calcara o meio de arte, com seu cemitério de ismos, a obra – repito – teria que jogar com esta densidade, este risco, esta nervosa inquietação. Não era – é verdade – típico da sua geração um maneirismo angustiante, o que acontecera no século XVI com Parmigianino, quando o Renascimento aparentemente parecia esgotado. Esta geração imaginou uma paisagem cultural inédita, sem uma psicologia do Destino, sem a preocupação de que o progresso é um juiz infalível e sem a necessidade de produzir um mecanismo destrutivo em relação as instituições artísticas. No Brasil eles não eram utópicos e estavam longe de ser conservadores. O Brasil não é um país cujo modernismo tenha criado um domínio nem que o gosto esteja formado por ele. O pós-modernismo brasileiro não deriva de um cansaço pelas formas ou idéias do modernismo, mas por uma atmosfera de burla ao excesso de historicismo, geralmente idealizado e não realizado na prática.
Só na aparência, a obra de Daniel Senise rompia com os padrões do modernismo brasileiro. Rompia, é certo, com uma iconografia que se acanhara com a arte geométrica. Lá estavam na sua pintura: uma retorcida coluna, sugestão de mantos, martelos, ossos, animais como patos e golfinhos, enfim, imagens irônicas, ambíguas, quase indefinidas, fragmentos de coisas, uma figuração de burla, porque sua arte figurativa não definia os objetos, não os realizava, deixava-os aparentes e ilusórios, nas sombras. Sem dúvida, os objetos pintados encarnavam uma poética de aparência, o que invertia o modelo objetivo das estruturas construtivas. Diante das três correntes básicas da pintura brasileira, Senise, com seus procedimentos conseguia perverter a todas – e esta perversão o tornava um elo entre aquelas correntes e a atmosfera pós-modernista que chegara no Brasil em meados dos anos 80. Expressionista, mas até onde? A subjetividade impulsionava-o em direção à tela; a tela, a memória, a narrativa, a biografia estão em suas obras, mas que objetividade o atraía senão a da coisa irrisória? Em confronto com o construtivismo, Senise invertia a estratégia: era na aparência que fundava o ser da obra e não uma subjetivação do objeto. Quanto a corrente fenomenológica, Senise tornava a tela não uma combinatória de percepção e objeto, mas uma invasão da percepção sobre o objeto. Assim Senise não era só um pintor que pintava (o slogan da época era “o prazer de pintar” ), mas um artista que trazia um problema intelectual para a pintura brasileira e um pensar sobre ela. Depois, a arte brasileira desde os anos 50 trava um embate com o plano. Influência ou não da paisagem ainda luxuriante no Brasil, que pode influir na percepção do artista, uma paisagem que “salta aos olhos”, o fato é que o plano tornou-se um dilema plástico para o artista contemporâneo brasileiro, cuja tarefa era de criar operações para sair dele ou torná-lo mais próximo do real, isto é, deixá-lo cada vez mais como um objeto não ilusionista. Senise, de novo, perverte esta norma. Ele interioriza o plano para melhor ressaltá-lo¹. Este fundo arcaico “velho e sujo”, nas palavras de Fernando Cocchiarale, fragmentado, ilusório, sugerindo às vezes, um sudário atemporal, fundamenta-se num negativo das operações construtivas. Mais do que uma objetividade, aparece a interioridade. Vemos o risco do seu jogo: com a materialidade densa da superfície, surge uma iconografia imaterial, atópica, fusão da memória fantasmal com os objetos e figuras que não são expressamente determinados. Arte da aparência e do tempo, Senise subverteu o processo contemporâneo da arte brasileira, sem sair dele. Artista da atmosfera pós-moderna, ele não poderia recuar para um passado de formas, para uma história ultra-moderna, para uma iconografia estabelecida como padrão. Só dentro do drama da arte brasileira, do seu tempo que é sempre presente, que Senise pode contornar esta história, para poder avançá-la um pouco mais. Daí, como o nosso expressionismo, o nosso construtivismo, este pós-modernismo aparece tão estranho e tão brasileiro.
Notas
¹ A técnica que inaugurava as preocupações de Senise com a superfície, foi descrita assim pelo crítico Fernando Cocchiarale: ‘O cretone, posto no chão do ateliê, é em seguida coberto com uma camada de cola com pigmento. Ao secar é retirado, e junto com a tela vem toda a matéria pictórica – manchas de tinta de outras pinturas, fibras, folhas, etc., que já estava no piso. O aspecto, por vezes sujo, e o descascado que mobiliza toda a superfície da tela – uma vez que ao ser retirada, parte da material permanece aderida ao chão, deixando vazios de tinta no suporte – determinam já uma primeira instância de pinturas”.
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