Daniel Senise

Daniel Senise: Vestígios

Dawn Ades

Texto publicado no livro Daniel Senise: Ela que não está, Cosac Naify, São Paulo, 1998

Por conterem figuras e objetos, os quadros de Daniel Senise costumam ser interpretados sobretudo em função daquilo que descrevem. Os temas iconográficos são isolados, as imagens rastreadas até suas fontes na história da arte ou em outras áreas mais mundanas, as associações simbólicas e as metamorfoses dos objetos discutidas, e é descrita a produção destes por intermédio da linguagem. Embora essas interpretações sejam úteis e inevitáveis, e não ignorem o fato de que as obras não são inteiramente explicáveis em tais termos, elas talvez minimizem outras características, como as relativas à construção, ao processo e ao sentido dos próprios materiais.

Os críticos ressaltam, nos trabalhos de Senise, um caráter duplo, por vezes explicitado em termos de abstração e representação. Ivo Mesquita, por exemplo, ao situar o artista, toma como referência uma nova concepção romântica da pintura que “se manifesta em geral de maneira representativa e figurativa, às vezes um tanto abstrata e em outras bastante realista, no entanto sempre expressando a força da pintura e da representação”. Em uma interessante discussão das técnicas usadas por Senise, Roberto Tejada chama a atenção para o fato de que sua técnica artística é “inseparável do sentido pleno das composições”, mas também que a tensão entre fundo e imagem é capaz de gerar uma ambiguidade desconcertante: “É difícil determinar se a obra é sobre a imagem principal ou sobre o ambiente no qual esta paira”.

lvo Mesquita menciona um comentário bastante significativo de Senise a respeito de seu apetite por objetos inexistentes: “Imagens atordoantes incrustadas em superfícies pictóricas construídas de maneira peculiar, elas atravessam paisagens nas quais o mundo visível, com suas limitações, é lentamente substituído por objetos produzidos por uma ‘ânsia por objetos inexistentes’”.

As implicações desses comentários sobre a obra de Senise, com sugestões implícitas de um relacionamento problemático com a representação, trazem à mente um ensaio seminal escrito por Meyer Shapiro em 1937, “Nature of Abstract Art” (Natureza da arte abstrata), no qual o autor argumenta que a arte abstrata, em suas múltiplas variantes, não se opõe simplesmente à representação e está longe de ser uma atividade puramente estética e a­histórica.

As virtudes da improvisação enigmática, a intimidade microscópica de texturas, pontos e linhas, as formas rabiscadas impulsivamente, a precisão mecânica na construção de campos incomensuráveis e irredutíveis, os mil e um engenhosos dispositivos formais de dissolução, penetração, imaterialidade e inacabamento… afirmam a soberania do artista abstrato sobre os objetos.

Portanto, não é necessariamente o desaparecimento do objeto na arte abstrata que está em questão, mas sua presença segundo os próprios termos do artista, sua emergência como testemunha do poder da imaginação, de uma verdade psicológica que se opõe à mera confirmação da realidade externa. O desejo pelo objeto é a outra face dessa expressão da liberdade perante as restrições da observação da natureza; um objeto capaz de transmitir um estado mental melhor do que a mais livre subjetividade gestual sem, ao mesmo tempo, reivindicar alguma existência transcendental ou essencial. O objeto penetra de novo a pintura a partir de uma ausência inicial, a partir de um espaço vazio que simboliza tanto a soberania como a angústia do artista.

Muitas das declarações sobre a obra de Senise quase imediatamente parecem propor o oposto do que afirmam: ele é considerado, ao lado de Kiefer ou Kuitca, parte de um “retorno à pintura”, mas, por outro lado, em muitas de suas obras mais recentes o artista evitou completamente a prática efetiva da pintura. A despeito disso, ele não se afasta do modo pictórico, ainda que o submetendo a tensões cada vez mais fortes. Uma dialética entre representação e material, entre objeto e fundo pode se estabelecer, mas não como oposição entre abstração e realismo. Senise já afirmou que toda pintura é sua própria resolução, e isso pode ser entendido em termos de atributos de equilíbrio e peso, da presença e ausência de objetos, de um campo espacial, assim como de texturas, que também podem estar intimamente relacionadas a atributos expressivos abstratos como som ou silêncio, ou um estado de espírito (nostalgia, por exemplo), ou então com ideias mais abstratas, sínteses humanas fundamentais como o tempo ou a história natural.

Basta examinarmos três de suas obras: O beijo do elo perdido, Na estrada e Sem título. Em todas elas há um campo espacial que se poderia assemelhar a uma paisagem, o que nem sempre é possível em suas obras. As formas entrelaçadas que criam um contorno solitário em O beijo do elo perdido são cuidadosamente modeladas, e lançam uma sombra que é o único elemento a dar a impressão de que está incrustado em um espaço real: o fundo, de outro modo vazio, e o ponto de vista próximo, ligeiramente oblíquo, lembram uma foto ou desenho de um espécime arqueológico, cuidadosamente colocado sobre uma superfície neutra – areia ou tecido – de modo a permitir a perspectiva mais informativa. As marcas arranhadas de leve na parte inferior assemelham-se a uma etiqueta de identificação em fotos de escavações arqueológicas. Mesmo sem o título, essas associações provavelmente saltariam à vista. Mas o “beijo” em si é como uma imagem onírica: uma condensação do signo do infinito e de cabeças incorpóreas de pássaros com ossos tão lisos que parecem de argila, uma imagem cômica e pungente que joga com uma leitura evolucionária literal da ideia de “eternidade em um único beijo”.

Uma “cabeça de pássaro” similar, ainda que mais despojada e equívoca, aparece em Na estrada e em Sem título quase como um objeto purista, escolhido por sua extrema similaridade com uma forma exclusivamente geométrica, mas esquivando-se a todo reducionismo desse tipo graças à especificidade onírica. No primeiro desses quadros, uma paisagem mais completa com um cadafalso e a pálida forma de uma árvore emprestam uma escala surpreendentemente maciça ao pássaro ­objeto, equilibrado em um fio, como uma aparição em meio a um halo luminoso, um cruzamento do filme Contatos imediatos do terceiro grau com um retábulo.

Em Sem título, o espaço é elaborado de maneira muito mais alusiva, mas a sugestão de uma linha do horizonte baixa junto à base do objeto lhe confere um destaque, de certa maneira, tal como as estranhas “árvores” colocadas na profundeza dos espaços paisagistas dos frottages de Max Ernst. Trata-se de um espaço irreal, semelhante a uma colagem, conexão esta acentuada pela disposição de minúsculos retângulos escuros como pequenas sepulturas abertas em um cemitério. O objeto central também parece originar-se de uma cabeça de pássaro vertical com um grande bico, mas tão delineado que lembra mais uma orelha da qual saem linhas sinuosas como fumaradas ou exalações. Também aqui há uma conexão com pensamentos sobre a morte, no sentido físico bem imediato da decomposição corporal.

O artista tinha em mente o fenômeno do fogo-fátuo, provocado pela combustão de gases emanados dos corpos em decomposição, que produz uma luz fosforescente misteriosa e espectral. Embora secundária, a ideia de música interliga vários pontos de conexão: os ossos, finos como os de um pássaro, poderiam ser flautas; o modo como a ponta da orelha/pássaro encosta no osso sugere notas musicais. Juntamente com a delicada tonalidade de toda a superfície do quadro, isso desencadeia uma série de metáforas visuais associadas à audição — ou talvez à palavra inglesa air em seu duplo sentido: de peça musical (ária) e de ambiente saudável ou insalubre. Não se trata de criar uma nova linguagem visual, e sim de uma dialética entre o intangível e a matéria, o aleatório e o dado.

Sem título foi a primeira obra de Daniel Senise que pude ver ao vivo; sua escala e textura produzem um impacto físico imediato que é atenuado nas reproduções e que afeta o modo como reagimos à imagem. Considere, por exemplo, o objeto no centro: ele é delineado com um senso preciso da forma como a tinta é capaz de capturar, tão singularmente, características da luz e do reflexo em uma superfície metálica, ao denotar contorno, volume e peso. Mas o que é essa coisa? Sua escala, nesse quadro de grandes dimensões, sugere um sino, uma leitura aparentemente confirmada pela imagem. Juntamente com a superfície esfoliada e esburacada do resto do quadro, que parece se declarar como a parede malcuidada de um velho edifício, a atmosfera transmitida era a de um convento, talvez na Itália, talvez na América católica da época colonial. O isolamento do contorno similar a um sino em relação ao fundo fatidicamente escuro é como um dobre de sinos em um mundo silencioso.

Essa leitura explicitamente literal provavelmente tem suas raízes em um desejo de explicar a aparente homogeneidade de uma pintura cuja superfície é tudo menos homogênea, mas que apresenta extraordinária unidade tonal. No entanto, este quadro transmitiu, a mim, um sentimento mais concreto a respeito dos diversos tipos de ambiguidade pictórica, assim como de um complexo relacionamento com a representação: a ilusão do espaço tridimensional em um não-espaço, a superfície de múltiplas camadas, a esquiva identidade do próprio objeto. Poderia ele ter sido inventado, tal como as surpreendentes criaturas do pintor surrealista Yves Tanguy, mas, ao contrário destas, não-orgânico? A forma cônica estriada — evidentemente feita pelo homem — poderia ser tanto imensa como minúscula. Não há nada que indique ou fixe sua escala, e ela adquire uma qualidade singularmente abstrata a despeito de sua “coisidade”. Descobrimos em seguida que ela pertence a essa estranha família de ferramentas cuja função mal podemos adivinhar: neste caso, trata-se de um dispositivo flutuante para alimentar patos que Senise encontrou jogado no jardim de seu pai. Esse objeto metálico é na verdade bem pequeno; ele foi fixado no centro de outra obra de 1988, onde é circulado por três peixes, sobre uma superfície áspera e descascada que lembra as pinturas murais de Pompeia. A aparência misteriosa desse objeto de metal deve ter atraído o artista tanto por sua ambiguidade como por sua força sugestiva em um contexto pictórico. Desse modo, pôde ser incorporado em imagens que perpassam categorias como abstrato e figurativo. Na realidade, a admirável instabilidade deste e de muitos outros trabalhos de Senise tem seu equivalente material e metafórico nas superfícies friáveis e contundidas das pinturas.

Para o observador, é impossível reconstruir em sua plenitude o processo de elaboração dessas superfícies e tampouco é fácil reconhecer os materiais empregados. Eles permaneceram tão mágicos quanto o processo natural de deterioração que afeta tanto as coisas orgânicas como as fabricadas pelo homem, formas imprevisíveis de dissolução e transformação.

O procedimento de Senise consiste, na verdade, em uma espécie de acréscimo por justaposição e requer o registro da impressão de elementos extrínsecos. A tela ou o tecido de algodão delgados são preparados e cobertos com pigmento, em seguida estendidos, ainda úmidos, sobre o piso do ateliê. Ao serem descolados do piso, retêm em sua superfície uma estampa das marcas, tal como o sudário, referência literal ou metafórica tão frequente na obra de Senise. Quando erguidos, a tela ou o tecido incorporam não apenas a poeira, as lascas e as manchas do piso, mas também zonas vazias de superfícies perdidas e os resquícios de obras anteriores submetidas ao mesmo procedimento. A tela é então fixada à parede e, em certos casos, retrabalhada da mesma maneira. Esse procedimento, tal como a decalcomania ou o frottage, deve muito ao acaso, às superfícies estampadas com elementos heterogêneos e traços aleatórios. Depois, Senise pinta sobre essa superfície ou então lhe acrescenta objetos.

O próprio ateliê faz parte da paleta à disposição do artista: seu piso, os detritos e refugos, cacos, pregos, colas, tintas, telas. Igualmente interessante é o fato de o processo requerer movimentos do plano horizontal para o vertical — o que talvez explique, em algumas obras, as superfícies e os incipientes espaços resultantes possuírem uma orientação imprecisa. Em 1989, o artista praticamente abandonou essa técnica de elaboração das superfícies e ainda que a tenha retomado ocasionalmente no início da década de 1990, ele então já adotara outros procedimentos, tais como o uso de pregos de ferro que deixam as marcas da ferrugem.

Pouco antes da obra descrita acima, Sem título, cujos tons de preto, branco e prata são quase idênticos aos de uma fotografia, Senise produziu quadros como Sem título  usando um pigmento vermelho brilhante. Os três objetos relacionam-­se com a superfície complexa e fragmentada de maneiras bem diferentes e cada um remete a uma técnica específica de representação. Há o perfil de uma figura feminina, as dobras de seu vestido desenhadas de maneira tosca; à esquerda, a mancha vermelha que lembra Miró (o ovo), pura cor não modelada através da qual transparece a textura áspera; e, no centro, um pássaro de plumagem azul­ metálica cuidadosamente pintado. Ao lado das nítidas áreas em vermelho, essa ave delicada, ligeiramente heráldica e extraída de um afresco etrusco, por um instante dá a todo o quadro o ar de uma tapeçaria medieval — esse vínculo é acentuado pelo muro de tijolos, visível na superfície descascada, ou arruinada, e reforçado pelo retângulo flutuante do tecido da própria pintura. Mas o pássaro se destaca como um objeto separado —   deliberadamente mais “pássaro pintado” que pássaro real — e, como tal, remete a uma ideia persistente e cada vez mais complexa: o desejo por uma presença, na pintura, de algo que não é deste mundo (como o corpo ausente do sudário).

São vários os caminhos pelos quais os objetos “vêm a ser” na pintura de Senise. Há aqueles que emergem da superfície, aqueles que chegam prontos de outra fonte e, por fim, os que passam por extensas transformações metafóricas e físicas. Não se trata aqui de categorias rígidas e distintas, pois há um incessante processo de interação. No caso do primeiro tipo de objeto, Senise comentou que, após descolar a tela do piso do ateliê, pendurava-a na parede e em seguida trabalhava “com imagens fragmentárias”. É difícil dizer o quanto isto se aproxima da prática surrealista de “ver em” uma configuração dada, como fazia Max Ernst em seus decalques e frottages a partir de tábuas repletas de veios, articulando em termos visíveis as imagens que se “apresentavam aos olhos”. Sem dúvida, Senise não retrabalhava as superfícies a fim de elaborar uma imagem completa; porém, é possível que em Sem título o “ovo” vermelho tenha surgido antes e sugerido o pássaro e a menina, dispostos como uma cena de anunciação pelicular. Nas obras posteriores, do final da década de 1980 ao início da seguinte, nota-se num variação significativa na maneira como os objetos pintados relacionam-se com a superfície em que foram pintados. Por vezes, uma forma pintada, tal como o sudário branco, é delineada de maneira tão vaga que se funde com o fundo produzido aleatoriamente; outras vezes, porém, ela se destaca com muita nitidez. A própria ideia do sudário é fundamental nessas obras, assim como a imagem nele pintado, pois ele recebeu a estampa do corpo morto, e os finos lençóis brancos usados por Senise, tal como o voile empregado em obras mais recentes, funcionam como o próprio sudário estampado.

A identidade dos objetos nesse conjunto de pinturas é de grande interesse, pois flui entre o sagrado e o cotidiano. Um martelo e pregos estão entre as ferramentas mais corriqueiras, mas também se encontram no cerne da simbologia católica como os instrumentos da crucificação. Senise explora ao máximo a ambiguidade inerente ao objeto, sua presença como ferramenta cotidiana e como símbolo. Os pregos deixam de ser objetos pintados e são eles próprios lixados à tela para que ali deixem seus vestígios de ferrugem. Os títulos podem tanto ignorar como enfatizar as associações religiosas. Assim, São Sebastião faz da corda do sino crivada de pregos — e pintada de maneira tão exata quanto em Sem título — um símbolo do santo trespassado por flechas. Já o martelo tem um destino inesperadamente diverso em Sem título (1992), que retrata uma pesada arma de ferro de uma época passada — talvez um verdadeiro espécime arqueológico, algo que os instrumentos da crucificação nunca poderiam ser.

A abstração e a figuração há muito deixaram de ser vistas como antitéticas, sobretudo no Brasil, com sua longa e diversificada história de “arte abstrata”, do construtivismo ao neoconcreto, e onde obras como as de Lygia Clark e Hélio Oiticica recolocaram o corpo humano em íntima relação com objetos e materiais. A obra de Senise parece ter rompido definitivamente com essa tradição, mas talvez preserve algo dela na sofisticação com que se movimenta nos limites da abstração e com que registra vestígios de gestos mínimos e irônicos. No entanto, sua obra também remete à verdadeira “fratura na representação” na arte moderna, que não ocorreu pela primeira vez com o cubismo e sim com a incorporação da colagem pelos cubistas. A colagem cubista destruiu virtualmente a unidade fictícia do campo pictórico: ela rompeu o impasse da imagem perspectivada, permitiu uma justaposição heterogênea de elementos díspares, a presença de elementos reais designando a si mesmos ou no lugar de outros, encadeamentos de metáforas, a presença independente de planos puros de cor e a acumulação de folhas de papel sobrepostas de modo a perturbar ou complementar a superfície do quadro. Sem qualquer semelhança superficial com a colagem cubista, as obras de Senise retomam o momento de tensão entre superfície e objeto, representação e realidade no interior do campo da pintura.

Quando recorre a imagens do passado, o artista demonstra um sentimento de liberdade e distanciamento em relação à história, o qual não é desprovido de pungência. Um de seus temas recorrentes é a precariedade e instabilidade das imagens. A série Ela que não está baseia-se em uma configuração gerada por uma ausência. Trata-se da forma criada pela remoção de várias interferências na superfície do afresco Morte de São Francisco, pintado por Giotto na Capela Bardi da Santa Croce, em Florença. No século XVII, a capela foi caiada como medida de proteção contra a peste; em seguida, monumentos funerários foram erguidos nas paredes em que se encontravam os afrescos. Quando, no século XIX, esses monumentos foram removidos e restaurados os afrescos, estes foram repintados ali onde haviam sofrido danos. Na década de 1950, devido a uma nova política de restauração, removeram-se todos os retoques anteriores, o que deixou estranhos vazios nas paredes pintadas. Na Morte de São Francisco, uma forma semelhante a uma moldura surgiu em torno da cena central inadvertidamente criada pela construção do túmulo. Essa moldura tornou-se o tema de uma série de quadros pintados por Senise; eles são, em um duplo sentido, o registro de uma perda, e a forma — fragmentada mas guardando resquícios de sua majestosa simetria, o eco do frontão clássico que antes encimava a sepultura — passa a se dissolver em formas e hieróglifos vagamente antropomórficos. Na verdade, Senise escolheu a única dentre as áreas abertas pelos restauradores dos afrescos cuja simetria oferece uma satisfação visual própria. No entanto, trata­-se ao mesmo tempo de um desenho claramente predeterminado, cuja raison d’être mal podemos imaginar.

A série Ela que não está mantém a forma original mais ou menos intacta, ao contrário das numerosas variações sobre a “mãe de Whistler”, que passaram por uma sequência de metamorfoses. A partir da imagem emparelhada da figura sentada e drapeada em Despacho, emerge uma forma semelhante a um vaso criada com os perfis das figuras em Sem título. O contorno em negativo deste quadro torna-se, por sua vez, uma imagem positiva em Sem título — sendo a forma em negativo agora um maciço vaso clássico. Este, por sua vez, gera uma imagem, Casamento, onde o “vaso-urna” adquire dimensões maciças como o pedestal que suporta as figuras que lembram pássaros vertiginosamente silhuetados em sua borda.

Outro objeto submetido a uma série de transformações metafóricas é o cérebro, ou antes, o signo pictórico que o representa: um oval bisseccionado com hieróglifos sinuosos divididos por espessa linha preta. Undisciplined é uma de suas raras obras nas quais seria concebível supor uma frase como origem da imagem; no entanto, é mais provável que os três elementos do quadro tenham encontrado sua forma final graças a um equilíbrio de contrastes visuais: o traseiro do cavalo, elegante e ritualizado como uma miniatura indiana; o pesado contorno do cérebro; e o quadrado no canto. Aqui a ironia está no trocadilho com a relação entre bissecção, dissecção e bidimensionalidade. Em Dumbo, Senise registrou a semelhança entre uma folha e a secção cerebral, que associou à foto de uma tromba de elefante erguendo-se, quase como um dançarino, para alcançar um galho distante. Essa leitura pode ser invertida, de modo que a espessa tinta escura e oleosa parece antes escorrer do cérebro que sustentá-lo. Isto torna ainda mais inquietante o choque entre a descrição um pouco clínica do cérebro e o escuro talho líquido que atravessa a tela.

Ainda que no quadro Sem título parte da imagem tenha sido pintada, em suas últimas obras Senise substituiu completamente a tinta por outros materiais. Grand Salon faz parte de uma série de obras recentes cujas superfícies são ainda mais estranhas e mais opulentas que as anteriores. Elas são incrustadas ou veladas com matérias diversas daquelas normalmente usadas em pintura. Nessas novas obras, a metáfora de um poço é incluída em uma complexa experiência de superfície e espaço, na qual opera de várias maneiras a ideia de lacuna, de separação entre superfícies, entre superfície e objeto, e entre o objeto e seu sentido virtual. Em Grand Salon os elementos encontram-se dispersos na superfície, rígidos, fragmentados e rompidos. Há sugestão de um espaço simultaneamente vazio e atulhado, ressoando como um salão abandonado após o banquete, com restos de misteriosos fragmentos decorativos e lascas de porcelana ou vidro. Como diz Senise a respeito dessa obra, “há uma sensação de espaço físico, como o de uma sala”. Não se trata, porém, da vaga evocação de um “grand salon”, e sim de um revezamento de espaços, construídos por meio de uma interação metafórica de elementos superficiais que, ao mesmo tempo, jogam com as ideias de solo e de caverna. Embora ele não tenha retomado nessa obra sua antiga prática de estampar a tela com as irregularidades do chão do ateliê, a superfície de Grand Salon assemelha-se a um piso, ao mesmo tempo que é o próprio aposento.

À direita, emoldurando a tela, há uma forma mais escura, repuxada como um drapeamento enlaçado, com a diferença de tonalidade reforçando a sensação de fechamento arquitetônico. A alternância entre uma orientação vertical e outra horizontal também se articula por meio das formigas, seres ambíguos que desafiam as leis da gravidade, zombam da cambaleante verticalidade do homem e vivem de restos, símbolos da dissolução e da perseverança.

Devido a sua escala relativamente grande, as formigas também contribuem para intensificar o sentimento de vastidão. Elas são fundidas, a partir de uma mistura de limalha de ferro enferrujado e resina, em moldes feitos pelo artista, e reaparecem inteiras ou despedaçadas em várias de suas abras. As vigorosas silhuetas de formigas no centro do Grand Salon opõem-se ao fragmento de cornija ornamental no topo, que funciona como um talismã da engenhosidade humana, uma curiosa mistura de formas, volutas e folhagens, abstratas e orgânicas, um filigranado divisor de espaços. Ambos são absorvidos na superfície juntamente com outros fragmentos quebrados; no início, parece que acompanhamos em meio a esses detritos o desmembramento das formigas, mas logo torna­-se impossível distinguir as identidades destas e de outros fragmentos rompidos e anônimos: o que no início parecera uma clara distinção entre animado e inanimado, o nomeável e o anônimo, torna-se cada vez mais confuso.

A predominância de fragmentos de resquícios de monumentos do mundo civilizado, desde colunas até cornijas, de cacos e restos, de ferrugem e poeira, assim como a da iconografia da morte e suas marcas em obras anteriores, fez que vários críticos  falassem de um fascínio pela morte na obra de Senise. A maneira mais comum pela qual as sociedades desaparecidas revelam-se a nós está no modo como dispõem seus mortos, e esses depósitos deliberados são complementados por aqueles formados de maneira aleatória pela acumulação de vestígios domésticos ou industriais, cuidadosamente recolhidos da terra pelos arqueólogos. Existe o desejo de se perpetuar pela construção de tantos monumentos, pela escavação de tantos túmulos, pelos corpos embalsamados e pelas urnas repletas de ossos e cinzas, que não passam de testemunhos da força emotiva desse desejo. Evidentemente, o fascínio pelas ruínas não era nenhum mistério para os românticos do pós-Iluminismo. Ele foi o pretexto para prolongadas meditações sobre a mortalidade, a passagem das eras e o declínio das civilizações. E havia um outro lado: a fixação no apelo puramente visual da ruína e do fragmentário, das texturas ásperas, da desordem. No entanto, há algo mais do que um pitoresco pós-modernista na pintura de Senise: uma espécie de especulação não sentimental sobre os vestígios e o reconhecimento preciso de seus atributos materiais, atitude que remete a uma etapa anterior do pensamento europeu — ao cético século XVII e a textos como o famoso ensaio “Urn Burial” (Enterramento de urnas), de Sir Thomas Browne. Esse ensaio é uma curiosa mescla de especulação metafísica sobre a pluralidade das práticas de sepultamento e de descrições vívidas, absorventes e desconcertantes dos restos exumados de tais sepulturas. São vários os paralelos entre esse texto e a complexa associação que Senise faz de rituais arqueológicos ou sagrados relacionados com o sepultamento e a exumação. Falando do conteúdo dos urnas funerárias, Browne escreve:

… algumas contendo duas libras de ossos, distinguíveis como crânios, costelas, maxilares, fêmures e dentes, com marcas recentes de sua combustão. Além disso, substâncias extrínsecas, como pedaços de pequenas caixas, ou pentes de elegante lavor, alças de pequenos instrumentos de bronze…

A peculiar junção que Browne faz, em “Urn Burial”, do antiquário e do médico cristão parece ressoar nas ideias e na prática de um pintor que fundamenta sua arte em troços, marcas residuais, refugos, e vê as ruínas da arte e de seus monumentos entre os quais circula livremente como indícios tanto da decadência como da continuidade. O fascínio do antiquário pelos cemitérios acumulados pela história, repletos de signos em ruínas e sentidos quase esquecidos, a fenda entre intenção e resultado, tem seu paralelo no artista. Browne considerava estar vivendo no fim da história:

Nós, cujas gerações estão destinadas a essa parcela definida de tempo… estamos por natureza constituídos para os pensamentos do mundo vindouro, e não podemos justificadamente nos recusar a considerar tal duração, que faz das Pirâmides pilares de neve e, de todo o passado, um instante.

Ainda que não pensemos mais em termos de eternidade, podemos muito partilhar a percepção que Browne tem da pungência dos monumentos, da futilidade das hierarquias e da precariedade tanto das civilizações como do próprio corpo.

As marcas de ferrugem que apareciam nos primeiros quadros são libertadas de maneira peculiar na série Bumerangue. As linhas, aparentemente assinalando um movimento puro — como o bumerangue que não tem alvo mas sempre retorna a seu ponto de partida —, precipitam-se e espiralam no espaço, criando vários circuitos fechados, seguindo padrões extraídos de um artigo sobre bumerangues publicado em uma enciclopédia que, segundo Senise, estava repleta de “conhecimentos inúteis”. Como diz Paulo Herkenhoff, essas linhas estão mais próximas do paradoxo de Zenão do que do dinamismo futurista: tal como a seta de Zenão, a todo instante encontram-se graficamente suspensas no tempo, para sempre finito, nas diminutas marcas isoladas de ferrugem dos pregos minúsculos. Essas linhas são o próprio oposto da linha gestual do pintor; elas representam tanto o movimento como a paralisia. Assim como o bumerangue, as linhas representam um movimento no ar em três dimensões, enquanto os pregos sobre a superfície vão lentamente enferrujando. A despeito disso, ambos são maneiras de marcar a passagem do tempo.

Uma das características mais surpreendentes da produção recente de Senise é o modo como ele emprega a silhueta. Isto parece funcionar como o equivalente da perícia artística naquelas obras em que não se aplica mais a relação tradicional entre desenho e pintura. Os moldes de formas fundidas que dão origem a essas silhuetas foram de fato preparados pelo artista.

Mas a ideia da silhueta, tão popular no século XIX, em certo sentido possui sua própria tecnologia e suas próprias metas e justificativas. Em comparação até mesmo com o mais rigoroso desenho de contorno, no qual se restringem ao máximo as modulações do lápis em uma curva de modo a sugerir volume, a silhueta não tem nenhuma profundidade. Não há nada além do próprio contorno, não é possível acrescentar nenhum detalhe. Porém, tal como o macaco em Sem título (1996a), as silhuetas podem, de maneira bastante irracional, nos convencer de que são um vestígio real da coisa. No século XIX foi desenvolvida uma técnica baseada no uso de sombras, e estas mantêm, assim como os moldes, uma curiosa relação com as práticas de representação. À primeira vista meras réplicas, os moldes tornaram-se no século XX — na obra de Duchamp, por exemplo — muito mais que simples meios de reprodução técnica. Com o fim das velhas barreiras entre os materiais artísticos aceitáveis e os proibidos, esses humildes procedimentos para a reprodução de qualquer objeto adquiriram nova importância. Na obra de Senise, as silhuetas fundidas estão ao mesmo tempo na superfície (como contorno) e sobre ela (como objeto). Desse modo, há aqui uma nova tensão entre o real (a superfície é feita de coisas reais) e a representação.

Em uma obra recém-terminada, La Villette, a forma de uma curva francesa, usada no projeto de móveis ou em modelagem arquitetônica, é construída a partir de moldes quebrados, semelhantes aos cacos de uma escavação arqueológica. Senise emprega essa forma decorativa ambígua em diferentes contextos; neste quadro ela se ergue como um chifre gigantesco ou mesmo como uma ave de rapina sobre uma silhueta das pernas da vaca. Em Sem título (1996b) curvas emparelhadas transformam-se nos chifres da criatura. Ao dar à obra o título de La Villette, Senise faz uma referência à Cidade das Ciências e da Indústria, no parque de La Villette, Paris. Para o artista, as pernas da vaca e a curva francesa têm uma relação entre si equivalente à que existe entre natureza e cultura, um centauro híbrido e um tanto cômico. Ainda que Senise não soubesse que o parque, uma gigantesca celebração da tecnologia e da cultura, foi erguido no local de um famoso matadouro, o fato de ter escolhido as pernas da vaca por coincidência traz à lembrança as fotos de amedrontadora precisão que Eli Lotar fez de um matadouro e que seriam usadas por Bataille para ilustrar seu breve texto “Abattoir” (Abatedouro) em Documents. Nele, Bataille acusa o homem moderno de afastar de sua vida os indícios de práticas sacrificiais passadas, pois o matadouro moderno, evitado e escondido, é descendente distante dos locais rituais que no passado cumpriam a dupla função de sacrifício e matadouro. A imponência asséptica do atual parque de La Villette é um fim irônico para o que Bataille descreve como “a lúgubre imponência dos lugares em que corre sangue”. Mesmo se hoje nos soa distante o tom ligeiramente mordaz desse texto, no quadro La Villette, com sua impassibilidade agressiva, a intrusão imprevista dessa história aponta para associações entrecruzadas que aderem às imagens produzidas por Senise, e que ele é capaz, de maneira deliberada ou não, de libertar e deixar que flutuem, como a menina em Levitação.

Muitas vezes, sensações de gravidade e de imponderabilidade são simuladas por meio da tensão entre os próprios objetos, e entre os objetos e as superfícies das obras. Essas forças opostas são apresentadas graficamente em Sem título, na qual a figura da mulher está ancorada numa coluna e nela gira, como uma espécie de cariátide invertida, hilariamente instável, sua graça do século XIX para sempre desequilibrada pelo pilar maciço. A figura foi retirada de uma ilustração do romance-colagem Une semaine de bonté ou Les sept éléments capitaux, publicado por Max Ernst em 1934 – uma obra que trazia, ela própria, gravuras do século XIX recortadas e recombinadas de modo a criar narrativas fantásticas que subvertiam profundamente as atitudes convencionais ante a religião e a sexualidade. No romance de Ernst, a mulher, deslocada de seu contexto original – no qual ela deveria estar desmaiando ou caindo, talvez como protagonista de uma langorosa e moralista narrativa vitoriana —, está arqueada de maneira estranha sobre um pilar de pedra ao qual está presa uma enorme corrente metálica de navio. Portanto, Senise reciclou imagens já recicladas, em uma economia pictórica que também valoriza o descartado.

A superfície dessas obras é elaborada com camadas de voile quase transparentes. O efeito é, como diz o próprio artista, suave em relação às superfícies mais duras e sujas de Grand Salon ou Sem título (1996a). As camadas de material fino produzem um efeito de moiré, cujo significado pode ser melhor avaliado com a ajuda de uma noção de Duchamp, a do “infra-tênue”, na qual o próprio moiré é um elemento crucial. O “infra-tênue” é um conceito esquivo que Duchamp formulou em uma série de anotações que exploram exemplos de “infra-tênue”, sem contudo jamais definí-lo. Não se trata de um índice, isto é, do resquício de um objeto em um meio receptivo, mas antes de uma diferença liminar entre, por exemplo, duas dimensões ou entre dois objetos idênticos. Um dos exemplos dados por Duchamp é o do instante em que “a fumaça do cigarro cheira tal qual a boca que a exala”. Transparência e iridescência, juntamente com reflexos, sombras e moldes, pertencem ao âmbito do infra-tênue: “peça de tecido iridescente comprada em Grenole / seda entretecida — (suporte do visível / infra-tênue) ao contrário do veludo côtelé que roça contra / si mesmo / dá um infra-tênue auditivo”, ou ainda: “O perolado, o moiré /o iridescente em geral: / relações com / o infra-tênue”.

Tal como Duchamp, Daniel Senise está interessado na ideia de separação de grau mais ínfimo como produtora de diferença. Há um novo desafio à representação nessas obras, cujas superfícies já não trazem mais marcas ou resquícios. Quanto ao moiré, o que está em jogo é o fato de que a superfície do tecido desloca-se e altera­se a fim de criar uma sensação de algo entre duas ou três dimensões. Ou seja, uma superfície que aparentemente evita ser ou plana ou em relevo, mas que partilha dos efeitos de ambos. No caso de Sem título, são os sucessivos véus de tecido que produzem o efeito de moiré, mas isso não passa de uma ilusão, pois na verdade há uma distância entre as camadas. A introdução de um pequeno ladrilho branco emoldurado como um olho reforça o efeito óptico da superfície inteira.

 

 

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