Daniel Senise: Telas 1988 -1994
Roberto Tejada
Texto publicado no catálogo da exposição do artista no Museo de Monterrey, México, em 1994
I
Camadas sobrepostas de um tempo elusivo em seu contínuo devir: monumentos erigidos por uma memória pictográfica, janelas que se abrem para a evocação urgente de formas recuperadas, rebentos de um eclipse encefálico, diagramas hieráticos que delineiam um estado remoto de aparências, efígies fantasmais insinuando um sistema de signos fabricados a portas fechadas em um porvir genérico ou em um presente cifrado.
A arte de Daniel Senise, aqui reunida na forma de mais de trinta telas de grandes proporções, busca inspirar uma espécie de assombro por meio de um registro que oscila entre a apoteose, o enigma e o imutável. O mundo de Senise é hermético, no entanto, transcorre sobre uma superfície capaz de combinar um simbolismo abstraído (a partir de múltiplas camadas de texturas aleatórias) ao empenho em elevar determinadas formas à sua condensada essência original. Trata-se de um trabalho onde a técnica é indissociável do sentido geral da arte. O que sustenta essa obra admirável é o equilíbrio ou, pode-se dizer, a ausência de gravidade produzida pela tensão entre a preocupação material de sua feitura e o alento reverente de seu dizer.
O pigmento enquanto portador de ideias plásticas, o processo como aspecto outro do conteúdo, a superfície como evento e artifício — segundo a chave de Harold Rosenberg: “a arena para atuar, não o espaço para reproduzir, redesenhar, analisar ou ‘expressar’ um objeto, seja ele real ou imaginário” —, com uma visível inclinação a inserir-se dentro de uma vanguarda embasada por sua história recente, Daniel Senise, assim como outros que começaram a produzir pinturas nos anos 1980, vê-se diante de uma série de questões relativas à representação na arte contemporânea. Uma vez confrontado com os vestígios da práxis conceitual definida durante os anos 1960 e 1970 — a crescente dissolução dos gêneros, o contínuo deslocamento do artefato, a irreversível transparência do aparato artístico — ou com a pluralidade de estilos trazida pelo retorno à pintura (neoexpressionismo, transvanguarda), como construir uma obra coerente que consiga narrar, a partir do final de uma modernidade já exangue, a história oblíqua de um colapso das formas representadas e, não obstante, de sua possível recuperação?
II
Poucos anos após seu início, a obra de Senise passou por uma importante transição. Basta compararmos um de seus primeiros trabalhos a outro recente para percebermos como essa evolução se manifesta: em Coração (1985) podemos ver, pairando concretamente e sem alarde, um imenso coração pintado com espessas pinceladas de um branco leitoso e pequenos retoques em tom de café que lhe conferem o aspecto inflado que ostenta. Abaixo há uma escada dupla em forma de X, em azul e preto, atenuada pelo mesmo branco que, além de constituir as muitas escadas, também representa a luz que o coração parece irradiar. A escada também aparenta estar suspensa em um abismo absolutamente escuro; no triângulo inferior do X formado pela escada, surge o semblante de uma figura humanoide. Ao redor de sua silhueta, veem-se algumas listras que, como nas histórias em quadrinhos, sugerem humor ou movimento. O tom e a manufatura do conjunto fazem lembrar (sem, contudo, entregar-se a tal propósito) os últimos trabalhos de Philip Guston caso houvessem sido pintados por Jim Dine.
Tanto a intenção como a execução de Coração sussurram, de forma voluntariamente cáustica, o que Senise viria a dizer com maior eloquência em trabalhos posteriores: que, por mais decifrável que pareça a superfície daquilo que constitui o espaço simbólico, seja na vida cotidiana (o idioma, os sonhos) ou em sua representação plástica, ainda estamos fadados a lidar com uma linguagem que, se meticulosamente inspecionada, permanece inatingível até o fim; uma questão de fé.
Com o tempo, o artista começou a submeter suas telas a um tratamento preparatório especial. Em um artigo sobre algumas das novas figuras da arte latino-americana, Senise explica o procedimento do qual emerge sua arte: “Eu preparo a minha tela, cobrindo-a totalmente de pigmentos [o artista geralmente utiliza um tecido branco de algodão comum]. Então a coloco no chão para secar com o lado pintado virado para baixo. Assim, deixo que o chão atue em conjunto com a superfície. Mais tarde eu descasco a tela do chão e a penduro na parede [muitos dos trabalhos de Senise têm mais de dois metros quadrados]. Então trabalho com imagens fragmentadas. Às vezes eu preciso repetir o processo no chão para que as imagens sejam envelopadas entre duas camadas de texturas aleatórias”. Mais tarde, quando os pigmentos secam, em uma reconfiguração de alguns dos procedimentos empregados por Yves Klein, Senise posiciona objetos como pregos de ferro sobre a superfície para que deixem marcas de ferrugem sobre a tela. Tudo isso opera de modo a criar gradualmente uma textura que se assemelha aos detalhes ampliados de uma pintura ou superfície desgastada pelos efeitos do tempo (Senise admite que passou a buscar essa textura “envelhecida” após ter visto o trabalho de Giotto na Itália). Em outros casos, após abandonar uma tela semiconcluída (o artista relata descartar quase setenta por cento do seu trabalho), Senise por vezes vira o tecido do avesso para revelar à contraluz os restos (às vezes invertidos ou de ponta–cabeça) de trabalhos anteriores inconclusos.
Sobre essas superfícies Senise traça as seguintes imagens, sozinhas ou combinadas: uma espécie de véu funerário pendurado em uma parede; um lenço com aparência de água de uma cachoeira ou de uma formação rochosa branca; a cabeça de um martelo e alguns pregos esparramados; a silhueta branca, por vezes invertida, de um cisne; manchas esféricas ou policromas, embora sombrias, ou cones de concreto. Algumas dessas imagens são vistas sobre uma pátina acidentada de gesso, e entre lampejos solares, volutas vegetais e ossos de animais subjacentes a gotas ocasionais de pigmento.
Daniel Senise se apropria desse vocabulário partindo de várias fontes. Da história da arte, tomou a iconografia correspondente à Crucificação (o martelo, o prego, a coroa de espinhos, o sudário); ou, em uma revisão do tema clássico, emprega a imagem do beijo, muito embora em seu caso se trate do trançado formado por dois crânios de aves de uma espécie — fictícia, por sinal — cujo bico é preservado mesmo após a morte e a putrefação (O Beijo do Elo Perdido). Em outras obras, incorpora a silhueta branca da protagonista da célebre pintura de Whistler, A Mãe do Artista: composição em cinza e preto, número 1. Da mitologia, a poesia e as ciências, o artista brasileiro extrai o cisne, os quatro elementos e as esferas celestiais, o cérebro humano na forma de duas árvores e — seguindo os desenhos e apontamentos do jesuíta Athanasius Kircher — a montanha com sete picos que formam a constelação da Ursa Maior.
Em um quadro sem título (1992), como se formasse uma imensa figura diagonal que divide o espaço da pintura em dois, há uma figura cônica, um turbilhão alvo atravessado por dez pregos, cinco de cada lado. A figura parece separar, em sentido literal, a escuridão que a rodeia. É esse elemento que estabelece neste trabalho — como acontece também em outros de Senise — uma tensão entre a severidade do fundo e a efígie, singular e luminosa, que ali se abriga; fica difícil determinar se o verdadeiro tema da composição é a imagem principal ou seu entorno.
Isso nos permite ler o trabalho de Senise como uma versão pós-moderna das atmosferas exaltadas de J.M.W. Turner, onde a figura se encontra envolvida em uma luta ferrenha contra seu outro eu: a realidade sublime e definitiva da natureza, como em sua pintura A Luz e a Cor (Teoria de Goethe) —A Manhã após o Dilúvio — Moisés Escrevendo o Livro do Gênesis, de 1843. No entanto, Senise traduz a natureza — modelo imprescindível para o romantismo e sujeito do modernismo — nos termos da cultura, de modo a representar o limite entre o desejo da razão pela totalidade e a incapacidade da imaginação de produzi-la. John Constable, outro romântico inglês, assim escreveu: “A arte de ver a natureza é algo adquirido, assim como a arte de ler os hieróglifos egípcios”. Em sua arte, Daniel Senise hesita em inscrever suas próprias runas que, ainda não decifradas, deixam sua marca enquanto tentativa de solucionar a crise da representação. Hoje em dia é notável o ato de investir a própria fé na relevância do simbólico, uma fé reticente à ideia de que, invariavelmente, os signos estão destinados a pairar sobre uma escadinha que leva sabe-se lá onde.
III
Tower of Song
Quem nunca passou por um daqueles momentos, tomando café pela manhã, ou esperando a chegada do metrô, em que perdemos a consciência plena de estarmos pensando em que os fragmentos erráticos da linguagem e as imagens quebrantadas destilam de repente uma canção familiar? Se as artes plásticas, por um lado, estabelecem uma “sinopse espacial” (Rudolph Amheim) dos acidentes do tempo, as representações de Senise são retratos onde se desenha a existência das coisas para além do mundo físico (ou que, ao menos, escapam da cronologia da mente e de seus processos indomáveis).
- Uma nostalgia pelo hierático: essa torre construída pela modernidade — diante do mundo televisionado e cibernético de nossa imaginação visual. Há um quadro de uma série intitulada, de modo muito revelador, Tower of Song, cuja imagem central é a de um menir ou dólmen de ladrilhos que constitui a porção superior do corpo de uma ave, como se Senise destacasse como os atributos do passado podem ser monolíticos ao se transformarem em fósseis do tempo. Wallace Stevens apontou: “Não raro, as pinturas de um museu de arte moderna parecem se transformar, com o transcorrer do tempo, em uma estética mística, em uma busca prodigiosa da aparência, como se ao encontrar uma forma de dizer e estabelecer que todas as coisas, seja por baixo ou por cima das aparências, são uma só, e que elas só podem ser refletidas ou justapostas — e nós só podemos acessá-las — através da realidade; sob esse tensionamento, a realidade muda da substância para a sutileza…”. O interesse do artista pelo erudito alemão do século XVII Athanasius Kircher não se dá por acaso. Senise descobre uma ambição em comum: o desejo impossível de registrar um glossário, uma enciclopédia concêntrica de um conhecimento universal. O que para Kircher era uma escritura sagrada e messiânica se converte, para o brasileiro, em uma arqueologia cujas formas paradigmáticas propõem mover seu teatro mnemotécnico: paisagens aleatórias onde se anseia por um saber que nos enobrece ao invés de nos oprimir com os abusos inerentes a outros tipos de conhecimento. Anseio este, nem é preciso dizer, deliberadamente ilusório.
- Princípio elementar da experiência estética: alienar o conhecido, domesticar o invisível. Em Last Supper (cat. 35), alguns objetos de uso cotidiano (frigideiras, cafeteiras, panelas) são representados como em uma espécie de fotograma; em um quadro sem título (cat. 29), vemos de perfil a silhueta longínqua de uma garota voltada para o horizonte, onde desponta um imenso cone orgânico; em outra obra, dentes e galhos formam o mapa desenhado sobre as paredes de alguma Altamira do porvir ou entre as páginas de um grande códice milenar.
- Se as vanguardas buscavam métodos para criticar a disciplina em si — para conquistar a “autonomia” da obra —, Senise cria composições com elementos tão abertamente estetizados que parecem tratar de um déficit, como se a “ornamentação e a representação [fossem] significantes que ocultam a forma pura que é, de fato, o significado transcendental”. Em outras searas, e sob a dialética de José Lezama Lima, a questão poderia ser reformulada assim: “tratar-se-iam de ausências possíveis, mais que de presenças impossíveis?”. Senise explora esses mundos assombrosamente desconjuntados em uma peregrinação de “decriação”. A superfície das coisas, a imagem duplamente removida: ao mesmo tempo máscara e adorno. É uma imagem terrível, como se Senise, como todos os iconólatras, dissesse que não há nada por trás dessas formas além da crença incerta de que as imagens iluminarão o que a linguagem, via de regra, obscurece.