Daniel Senise

Daniel Senise, ou: só queria te dizer duas coisas

Paulo Miyada

Texto publicado em Quase Aqui: Daniel Senise, Associação para o Patronato Contemporâneo, São Paulo, 2018

Introito: doutor, acho que estou vendo coisas

Muitas vezes são os outros, mas, no que diz respeito à visão, o inferno somos nós mesmos.

O que há de desafiador nos processos que nos permitem enxergar é que extrapolam em muito o já complexo jogo ótico das luzes e reflexões, com todas as suas variáveis de luminância, espectro cromático, aceleração, comprimento de onda, distorção atmosférica e, na escala do cosmos, desvio gravitacional. Tudo isso está no campo da física, ainda que às vezes em seu território especulativo. O mais difícil de prever e controlar reside na incerteza: ver é sempre em alguma medida rever e antever.

Sabe-se que a pupila, a íris e a córnea constituem a parte frontal do olho humano, a qual juntamente com o tecido nervoso integra um sofisticado sistema ótico. Daí em diante, há inúmeros mistérios que os neurocientistas se esforçam por desvendar. O certo é que, quando enxergamos alguma coisa, muitas operações são simultâneas às ágeis sinapses que permitem a formação da imagem em nosso sistema nervoso. Memórias direta ou indiretamente ligadas ao contexto do que vemos entram na operação, queiramos ou não — enquanto vemos lembramos, ou ficamos na iminência de lembrar, inúmeras coisas que nosso cérebro acredita serem relevantes, ou porque são similares, ou contrastantes, ou porque estão misteriosa e irremediavelmente associadas ao contexto. E o pior, nós nem sequer controlamos plenamente o que nossa mente entenderá como “o contexto” em cada ocasião.

O fato é que nossas vontades, expectativas, lembranças e capacidades linguísticas estão sempre em campo, agindo tão rápido que nossa atenção consciente é incapaz de contê-las, quanto mais controlá-las. É claro que, por nossa tendência ao hábito e à repetição, dificilmente isso nos causa problemas. Seja porque o funcionamento dessa máquina mental — que é nossa máquina do mundo — é realmente muito bom ou porque não temos escolha senão nos adaptarmos a ele, sobrevivemos a dias, semanas e às vezes anos sem depararmos com o pouco controle que temos sobre suas engrenagens e o quanto elas são incríveis promotoras de confusão e erro.

Mas essa naturalização dos processos de percepção é um tanto frágil, pois há muito que pode nos fazer notar abruptamente o quão distante está o que enxergamos do que efetivamente está diante de nós. Para reestabelecer esse espanto atenuado pelo hábito basta, por exemplo, abusarmos de drogas lícitas e ilícitas, estarmos com o sono intranquilo, mergulharmos em quebra-cabeças de nível avançado ou, até, nos depararmos com a obra de Daniel Senise e suas armadilhas ao olhar.

Um: você pode me explicar como funciona?

Neste livro, por exemplo, logo na primeira dezena de páginas, encontramos uma obra peculiar, a obra 3 Caminos, realizada em 1995. Ela integra uma pequena coleção de imagens inspiradas na trajetória dos bumerangues, todas feitas em 1995, dentre as quais há três telas chamadas, simplesmente, de Bumerangue, como a imagem que abre este ensaio. É possível falar delas por sua articulação mais epidérmica, por assim dizer. Trata-se de obras exemplares do amadurecimento da relação de Senise com vestígios indiciais, marcas de processos pelos quais os materiais de sua pintura passaram em algum estágio preliminar de sua fatura. Nelas, os vestígios de oxidação do ferro não apenas foram apropriados pictoricamente pelo artista, mas foram produzidos por ele, que dispôs pregos sobre a tela de forma a definir curvaturas que são, por sua vez, também esquemas de trajetórias percorridas por bumerangues, ou seja, rastros passados ou futuros de outros corpos em movimento. Assim, em seu assunto e sua fatura, a epiderme dessas pinturas remete a vestígios e pegadas.

Mas é plausível também, tendo em vista as décadas de produção que Senise já apresentou ao público, perceber nessas obras uma pista do interesse do artista pelos aparatos da visão. A evidência dessa analogia entre o bumerangue e o olhar está na já citada tela 3 Caminos, em que, na altura dos olhos da silhueta de garota, parecem sair e voltar três dos esquemas de trajetória justapostos como um único emaranhado. A figura remete a algum estudo de ótica incipiente, talvez medieval, pré-perspectural, e, ao mesmo tempo, é metáfora perfeita para os dilemas aludidos no introito acima. Em vez da representação linear e geométrica do rebatimento de linhas de luz, o olhar aparece representado por um emaranhado de curvas que vêm e vão sem distinção entre sujeito e entorno, contrabalançado, ainda por cima, por uma espécie de linha fantasma espelhada que, quem sabe, aluda ao que a garota olha e não enxerga ou mesmo ao que ela não vê e ainda assim percebe.

Interpretações à parte, a ênfase no olhar que se repete também na capa do livro — em que vemos a silhueta da nuca de um coelho voltado para a frente, também olhando algo — sublinha a preocupação do artista com o funcionamento da visão. Sem apresentar-se como um teórico do assunto, Senise transparece uma curiosidade que ultrapassa o simples diletantismo. Trata-se de alguém bem dedicado a ver e a pensar em como se vê. Isso implica ver muito e sistematicamente a obra de outros artistas; interessar-se pelas mais diversas fontes que dizem algo sobre processos criativos e também cognitivos; refletir sobre o papel da crença e da fé no modo como se apreende a realidade e o mundo; apreender tanto quanto possível sistemas e regimes de representação; debruçar-se com uma espécie peculiar de obsessão sobre manchas, resíduos e vestígios que mostram o acúmulo de memórias sem revelá-las.

Dentre esses desdobramentos da curiosidade aguçada de Senise, é o último que se mostra de forma mais explícita e incontornável. São inúmeros os exemplos em que se valeu de superfícies dotadas de certa história, seja com gestos arqueológicos, seja em contemplação quase mística (ver os casos extremos de sua intervenção nas ruínas do Hospital Matarazzo, São Paulo, em 2014, e sua instalação Branco 462 e Branco 2430, Rio de Janeiro, 2011). Não obstante, é no penúltimo dos pontos citados no parágrafo anterior que reside uma complexa engrenagem da pesquisa visual do artista e sua obra. 

Dois: por que dois, se um?

Pensemos em um precedente. Conforme sugerido pelo próprio artista, e aceito por boa parte dos historiadores da arte, Marcel Duchamp passou cerca de dois anos — por volta de 1913, quando trabalhou na Bibliothèque Sainte Geneviève de Paris — lendo avidamente os mais variados tratados sobre perspectiva e ótica.

Ainda assim, ou por causa disso, o ambicioso projeto que à época começava a conceber, La Mariée mise à nu par ses célibataires, même (Le Grand Verre, 1921), passa longe de um exercício regrado e constante de uma técnica de representação em perspectiva do espaço. Ao contrário, o que Duchamp vinha ensaiando e aplicou de forma intensiva nessa célebre obra foi a soma articulada de um sem fim de modelos de representação que, justapostos, se confundem e rimam até a quase indiferenciação: são inúmeros pontos de fuga, traços indiciais, planificações, manchas, representações icônicas e assim por diante. Mesmo Ulf Linde, que dedicou muitos anos a desvendar e replicar La Mariée…, soa por vezes alucinado quando tenta descrever as imbricações entre os diferentes modelos utilizados pelo artista em uma mesma obra.

Associado por Duchamp à alcunha de “perspectiva intelectual”, tal emaranhado de visualidades não chegou a ocupar o centro de seu discurso sobre a obra, que criou assim uma charada visual inusitada, que passa despercebida para os espectadores desatentos e ao mesmo tempo fornece muito material para a conjectura dos pesquisadores dedicados. Mas seria possível tratar do jogo malicioso entre regimes contrastantes de representação como um problema em si mesmo, que funcione como gatilho para outras reflexões. É o que acontece em grande parte da obra de Daniel Senise.

É exemplar o que se passa nas suas pinturas iniciadas nos anos 2000 (como Irving e Witchal) feitas pelo encaixe à maneira de marchetaria de faixas de tecido tingidos por uma espécie de decalque das texturas e marcas de pisos de determinado lugar, como de um museu, por exemplo. Nessas imagens, o caráter planar da monotipia dos pisos colide com a espacialidade sugerida pelas linhas perspectivadas definidas pela colagem dos tecidos. Assim, o olhar percorre paralelamente a superfície da tela e a grelha ortogonal definida pelos pisos e, simultaneamente, mergulha na profundidade do espaço cônico perspectural. Melhor dizendo, o olho enxerga a superfície ou a profundidade, uma de cada vez; mas o cérebro embaralha — emaranha — ambas essas percepções com nossas memórias atávicas e com a distorção espacial da obra disposta no espaço expositivo.

A trama se adensa mais ainda noutras obras de Senise feitas desde então — e basta folhear este livro para confundir-se entre perspectivas intrincadas de estruturas simples e o contrário; tropeçar visualmente em treliças, estantes, grelhas, texturas, fragmentos, ritmos e formas complementares dissociadas. Em algumas páginas, hesitamos ainda ao ver vistas de maquetes anamorfas de espaços expositivos. E, se calhar de parar na página certa, nas imagens da recente série Prodome, encontramos quebra-cabeças capazes de induzir um curto-circuito de percepções, tendo finalmente imbricado sistemas de representação a tal ponto que eles perdem, por assim dizer, sua verossimilhança perceptiva.

É sintomático que essas imagens algo piranesianas, esses espaços incongruentes, se associem aos pródromos, sinais que nos avisam que há algo errado em nosso corpo, mas não são suficientes para um diagnóstico preciso. É sintomático porque faz lembrar, como já havia previsto Duchamp, e hoje nos demonstra Senise, que o mais sofisticado dos entendimentos dos princípios da visão jamais abolirá a ineficiência, a abrangência e a serendipidade da nossa contaminada percepção do real.

Conclusão: tornou-se uma epidemia mundial

Feito esse passeio pelas colisões nas engrenagens da representação provocadas por Daniel Senise, pode-se voltar para o começo e lembrar que esses exercícios não se restringem a demonstrações de apuro técnico e visual. Eles podem ser vistos como a maneira com que esse artista se debate com as faltas e os excessos da memória na definição do que somos e do que entendemos do mundo. Inclusive há momentos em que a elaboração técnica das imagens se apresenta simplificada, abrindo espaço para que esse assunto assuma pleno protagonismo.

É o caso da instalação que Senise ora desenvolve para o Oi Futuro, chamada Mundial. Um visitante de cada vez entra em uma sala de dez metros de comprimento, escurecida, com exceção da outra extremidade da sala, em que há uma imagem luminosa, uma fotografia. Predominantemente branca, a imagem perspectivada (ponto de vista central) apresenta um cômodo algo melancólico com seus móveis esvaziados. Conforme se aproxima para ver os detalhes e talvez buscar detalhes que associem o quarto fotografado a alguma personalidade definida, o visitante acaba surpreendido pelo desvanecimento gradual da imagem, que se apaga como se esquivando-se ao olhar minucioso. Sobra uma leve sombra retiniana, a impressão deixada pela imagem luminosa na retina, a memória do cômodo que não identificamos e ainda assim pode nos parecer tão familiar.

Trata-se do quarto esvaziado pelo artista ao mudar-se da casa dos pais e que, por circunstâncias diversas, acabou por permanecer assim, silencioso e imutável, por mais de duas décadas. É uma prova física de que o passado existiu, mas que como tal se mostra um artefato mudo, que revela tão pouco sobre a peculiaridade das memórias desse passado que acaba servindo como lembrança emprestada para qualquer um. Quem no mundo não deixou para trás algum canto como esse? Abandonamos lugares, objetos e vivências dos mais variados tamanhos e formatos, sem saber que por vezes ninguém se dignará a ocupá-los e reconfigurá-los. São nossas pegadas que permanecerão como fantasmas e, ainda assim, não servirão ao futuro como mensagens de alguma verdade. São inócuas e insípidas e, por isso mesmo, servem a qualquer um que queira se lembrar do que já não é.

PS.: O título desta última obra alude discretamente à estação AM que o artista ouvia na juventude, pioneira na difusão do rock pela iniciativa do DJ Big Boy. Ela mesma, a frequência de rádio antes ocupada pela Mundial, tornou-se desde então uma estante esvaziada. Com o crescimento das rádios musicais FM, virou um terreno baldio comunicacional, transmitiu notícias, música popular, corridas de cavalo e hoje está arrendada: seu slogan é “A rádio do poder de Deus!” — seja nos espaços, na memória ou nas ondas do rádio, predomina o horror ao vazio e, onde há lacunas, em breve se associará alguma mensagem imprevista.

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