Daniel Senise

Daniel Senise ou a paixão agreste da pintura

Bernardo Pinto de Almeida

Texto para exposição Daniel Senise realizada na Galeria Canvas, Porto, Portugual, 2001

Há muito que a pintura deixou de ocupar o lugar histórico de arte maior ou de arte entre as artes. Ou seja, aquele espaço da representação por excelência que, ao longo de séculos, e particularmente desde a Renascença, justificou o seu uso como meio privilegiado de comunicação pela imagem, a que se foi adequando primeiramente uma codificação de valor sobretudo simbólico — hoje quase só decifrável pelo saber iconológico ­ e, mais tarde, já em tempos de laicização, um valor propriamente pictórico que haveria de garantir, no período Modernista, a persistência da sua dimensão experimental.

Dito de outro modo, a leitura que hoje podemos fazer dos exemplos da história da arte — quando não nos debruçamos enquanto especialistas capazes de compreender o sentido profundo inscrito como uma cifra nas obras do passado, em que das cores aos temas, tudo tinha significações precisas que sinalizavam o sentido exato de cada representação —, é como ficar diante de um vasto leque de imagens que se acumularam nos cofres que constituem os nossos museus de tradição ocidental. Tal foi, de resto, em grande medida, essa leitura puramente formal, ou visual, que libertou a pintura da sua significação mais esotérica. E nesse sentido Duchamp pôde afirmar, entre a premonição e a ironia, que toda a pintura do passado era um ready-made como qualquer outro.

Pouco cultos embora, os primeiros modernos — e sobretudo depois de uma certa libertação das formas e de alguma humanização dos temas trazida pelo Romantismo na primeira metade do século XIX — terão sido os primeiros a entender, ainda que no plano da intuição, a pintura do passado como um vasto repertório de formas visuais que interessava prolongar e aprofundar estritamente nessa dimensão formal.

Assim se assistiu, particularmente com Courbet e com Manet na segunda metade de oitocentos, a um movimento de progressiva laicização da pintura, o primeiro conferindo-­lhe um estatuto de imagem da realidade e o segundo um estatuto de realidade da imagem. Seria de resto este último quem, abrindo a porta à bidimensionalidade, permitiria o surgimento de uma pintura particularizada nos domínios da impressão e da sensação, atenta às pequenas variações lumínicas e a um modelo de interpretação subjetiva e intuicionista da realidade que depois viria a ser servida pelo movimento dos impressionistas.

Os impressionistas foram talvez, em toda a história desta arte no ocidente, os primeiros que fizeram uma leitura estritamente formalista ou visualista da realidade da pintura, abrindo rapidamente o caminho para o que se chamou a revolução moderna que consistiu sobretudo na libertação final de todos os seus códigos de representação, não apenas daqueles que pediam uma certa fidelidade ao real como, sobretudo, os já atrás referidos, que se ligavam a uma teia de significações ocultas e decifráveis apenas no interior de uma certa cultura de elites.

Com estes a pintura tornava­-se impressão, sentimento, visão pessoal, pelo que muito rapidamente, com a aceleração dessa particularização da subjetividade, a pintura teria que se tentar pela via da expressão e, portanto, do expressionismo.

Fauves, expressionistas nórdicos e alemães etc, muito rapidamente constituiriam o vasto contingente que haveria de aprofundar na arte da pintura essa intenção subjetivista, de herança romântica ao nível do seu sentimento, mas de expressividade brutal ao nível da sua eloquência, em que se recuperavam os gênios então um tanto esquecidos de um Van Gogh ou de um Gauguin como antecedentes genuínos desse grito pela liberdade que os novos artistas sustentavam como verdade absoluta e credo indesmentível.

Depois desses primeiros dez anos de arte do século XX, a pintura fora de facto destituída de toda a sua memória antiga ao mesmo tempo que liberta para um massacre que o Modernismo iria assegurar até às últimas consequências, ou seja, até ele mesmo se encerrar nas contingências de um processo histórico codificado.

Cubismo de Picasso e Bracque ou de Gleizes e Metzinger, Orfismo de Delaunay, Suprematismo de Malévich, Abstracção lírica de Kandinsky ou Futurismo de Balla e de Carrà, já para não referir outros ismos da década de 10-20 europeia, seriam o suficiente para garantir o derrube de todas as anteriores coordenadas e para instituir um território outro em que a pintura se tornava mero exercício de experimentação dos seus próprios limites. Limites formais, ideológicos e, também, naturalmente, limites do representativo.

A representação — entendida como reprodução relativamente fiel da realidade externa — cedera de vez lugar à afirmação de uma pura subjetividade, de um ponto de vista centrado no sujeito do artista, na sua forma de ver as coisas a partir de si mesmo mais do que na forma das coisas, cujo registro de pura impressão passaria a ser o motivo maior de toda a ação pictórica.

Da realidade exterior haveria de passar-se assim para a realidade interior, noção vaga e sem espessura concreta que porém o nascimento da psicanálise, cerca de 1900 graças a Freud, de certo modo contextualizava no âmbito da revelação do inconsciente. Situação nova, de resto, a que o Surrealismo traria uma legitimação imaginária e poética que jamais outra ciência, humana ou natural, conhecera.

O processo do Modernismo foi então o de aprofundar e o de consciencializar estes valores instituídos pelas primeiras vanguardas — dadaísmo incluído — e o de construir, a partir desse corpus primeiro e fundador, o sentido programático (e a seu modo normativo, como mais tarde se comprovou na interpretação de Greenberg) do que a pintura deveria ser para se tornar arte em progresso capaz de refletir o desenvolvimento histórico. Nesse sentido todo o   Modernismo se constituiu como releitura hegeliana, isto é dialética e profética, da anterior história da arte, assumindo a missão de elaborar o sentido último da prática artística.

Assim sendo, a releitura que este fez da própria história da arte que o antecedera passou a ter um sentido progressista, em que a sucessão de movimentos e de gestos parecia explicar-­se facilmente pela necessidade de fazer progredir, à imagem de todas as demais formas de expressão, uma suposta aventura do espírito humano.

Ora o Modernismo, nascido e crescido na assumpção violenta da procura de uma arte pura, teria inevitavelmente que ter um fim trágico. Disso deram sinal as chamadas últimas vanguardas, a partir de inícios da década de sessenta, como de outro modo a progressiva redução a vocabulários mínimos pelos artistas minimal, chegando a realizar­-se, na teoria de Donald Judd dos specific objects, muito do que afinal Greenberg, na sequência de Adorno, defendera, ao querer isolar a arte de toda a impureza e de todo o kitsch.

Se Pollock em grande medida exprimiu a hipertrofia do subjetivo, através da projeção performativa das tintas puras sobre a tela, em construções de puro automatismo, caberia a Judd o papel de especificizar a arte para uma via de conceito que a isolava enfim de toda a contaminação do corpo e que a elevava assim ao plano da pura construção do espírito, fechando assim o ciclo modernista.

Talvez tenha sido necessário fazer esta breve recapitulação algo apressada para poder agora argumentar contra todo aquele pensamento — cujo maior representante é o importante crítico germano-americano Benjamin Buchloh — que considerou o chamado movimento do regresso à pintura como momento puramente regressivo na história da arte deste século.

Tenho sustentado, e não vejo razão para mudar de ideias, que o regresso à pintura correspondeu antes, e em grande medida, a uma necessidade não tanto de voltar sobre um modelo de representação esgotado, como antes de regressar sobre uma prática a que o desenvolvimento do próprio Modernismo progressivamente tinha retirado legitimidade e pelas razões que acabo de aduzir.

O que pretendo defender, portanto, é que esse regresso, se é que de um regresso se tratou, não se fez sobre a própria pintura entendida como modelo de representação, mas antes sobre o que restara da pintura depois da sua mise-à­mort pela violência niilista (e de marca hegeliana) das chamadas últimas vanguardas.

Tratava-se então, neste caso, de regressar sobre uma prática considerada moribunda e, num gesto algo romântico mas todavia denso de consequências, interrogar a sua pertinência diante de uma nova realidade técnica, tecnológica, mediática, social, económica e cultural.

Em vez de se querer pensar essa realidade em particular como uma transitória vitória dos mercados — que funcionam tão bem a vender instalações como objetos, pintura ou qualquer outra coisa, uma vez que a questão aí é outra — julgo que é urgente repensar este regresso à pintura como sinal que comunica intuitivamente um outro tipo de fenomenologia. Por exemplo, a que nos coloca diante da necessidade que o corpo e a visão humanas têm de se medir com a imagem verticalizada e bidimensional, como duplo e como espaço de ficção.

Porque esse ressurgimento, ainda que algo subjetivante no seu sentido mais imediato, tem muito a haver com dois outros fenómenos que não poderemos ignorar. Por um lado, com a noção relativamente recente de que a identidade não é um dispositivo fixo mas antes um processo em devir construtivo, em que o desejo do sujeito desempenha um papel concreto, não absolutamente sobredeterminado pelas pressões coletivas da instancia social.

Por outro lado, porque a chamada sociedade da informação e do consumo de massas criou — através dos mecanismos da indústria cultural — uma tão desmesurada equivalência de todas as imagens que devastou completamente todo o edifício da história da arte tornando-­o num puro banco de imagens ou num museu imaginário a perder de vista. Foi este em grande medida o novo contexto que não tardaria a designar-se por pós-modernista, por oposição à normativa modernista, projetando muitas vezes no seu todo um sentido puramente hedonista e regressivo que apenas se verificou em certos círculos.

Os artistas que, na década de oitenta e depois, assumiram e continuam a assumir, contra alegadas acusações de serem reacionários, esse retorno sobre a pintura agiram e agem pois como uma espécie de arqueólogos inspirados que, sobre os escombros de uma arte outrora tida por maior, edificam — em parte graças à consciência conceptual que se forjou nas décadas de sessenta e setenta do século XX — uma outra forma de entender e sobretudo de questionar a imagem através de uma prática renovada da pintura.

Uma forma outra que, não ignorando embora os dispositivos tecnológicos da comunicação de massas e da indústria cultural, ainda assim procura salvar da sua morte anunciada uma prática restituidora de uma verdade sensível (desejante e libertadora) que só através dela se torna possível. Para cujo entendimento estético preciso será necessário regressar sobre as teses atualíssimas de um Merleau-Ponty a respeito do que este designou como a fenomenologia das sensações e da percepção.

Foi de fato este grande pensador francês quem mais claramente entendeu, na sua leitura de Cézanne, a verdadeira natureza da pintura, evidenciando o quanto ela se revela em tudo aquilo que se verifica como o que falta no mundo para ser quadro. E toda a elaboração sobre a chamada morte da pintura ou o seu consequente entendimento como uma prática regressiva embate neste argumento poderoso que defende a pintura como via de revelação do homem a si mesmo numa dimensão que nenhum outro processo confere dentro das técnicas conhecidas até hoje.

A relação entre o olho e o espírito, para retomar ainda o célebre título de M. Ponty, verifica­-se na pintura — quer do lado de quem a pratica, quer do lado de quem a olha —, como uma fonte de renovação do imaginário. Para isso precisamos da pintura, para nos dar aquilo que nem a fotografia nem qualquer outro medium nos chega a oferecer. Daniel Senise, uma vez que é dele que aqui se quer falar, muito exatamente o disse quando falou de “uma ânsia por objetos inexistentes”.

Esse desejo pelo que ainda não existe — que é outra forma de falar de mundos a haver, não é outra coisa senão uma metáfora para designar aquilo que nos interessa na arte, a saber, a sua capacidade de transfigurar o real, ao mesmo tempo que investindo-­o da hipótese de outras possibilidades de desenvolvimento. A realidade não está definida à partida. Ela existe como devir, como movimento incerto, aberto a um infinito campo de possibilidades. Toda a miséria do historicismo consiste precisamente na crença de que a realidade é previsível pela alegada previsibilidade da análise da história.

Ora a história — que de modo nenhum chegou ao seu fim, como o quis um certo deslumbramento pretensamente pós-modernista, mas estruturalmente conservador — pelo contrário cedeu, a partir do contexto gerado pelo advento da pós-modernidade, a um espaço aberto em que uma trama imensa de possibilidades se engendra como uma rede de sentidos e de continuidades possíveis.

Esse não-determinismo da história, aberto de novo ao sentido do trágico — repare-se por exemplo na mudança de rumo e no regresso violento da história em virtude dos acontecimentos do 11 de Setembro em Nova Iorque — em certa medida terá estado igualmente presente nesse quase freudiano regresso do recalcado.

Não foi afinal a pintura o grande recalcado do Modernismo, em que ao lugar da forma se pretendeu sistematicamente opor o lugar da ideia como se duas realidades opostas se tratasse? E não foi o seu regresso desejado como forma de ruptura para com o modelo dominante do Modernismo historicista (platónico-hegeliano) que pretendia fazer triunfar o absoluto da ideia?

Eu direi que o regresso da pintura, tantas vezes comentado como um simples efeito colateral da ideologia do mercado, correspondeu antes a um novo enfrentamento do corpo, da intuição, do imaginário, da sensibilidade, da sensualidade, e até da sexualidade e do desejo desses objetos ainda inexistentes, por oposição ao deserto espiritual, puramente racional e absolutizador da ideia, entendida como lugar por excelência da arte que o equívoco modernista havia criado.

Nesse sentido, artistas como Julian Schnabel, Georg Baselitz ou Daniel Senise integram precisamente o contingente de uma oposição decisiva a esse predomínio do conceitual, denunciando a sua fragilidade estrutural e, o que é mais importante, a sua incapacidade, também ela histórica, de lidar com outras realidades que não as de uma via encerrada pelo totalitarismo do puro espírito contra o direito a exprimir o que participa antes de uma realidade corpórea do sensível e do próprio imaginário.

Mostrar não apenas os objetos inexistentes como também a ânsia deles (quer dizer: o seu desejo e a vivência psicológica desse desejo), consiste precisamente em explicitar as formas de um desejo que o Modernismo longamente forcluiu, nomeadamente interditando, na sua fase final, o direito à expressão da subjetividade. E porque haveríamos todos de pensar ou sentir do mesmo modo?

Se alguma da arte social e politicamente empenhada do nosso tempo continua, em parte graças a um retorno, esse sim reativo, a insistir na necessidade de escapar ao mundo das formas em nome de uma espécie de boa consciência do politicamente correto, tal não denota senão a permanência de um receio, jamais assumido, desse confronto com a realidade sensível e material do corpo que desde sempre marcou os rumos da arte mais inovadora que se fez no ocidente. Aquela que propriamente logrou investir o corpo imaginário como fonte e objeto de toda a arte.

E outro dos equívocos dessa arte que tantas vezes se reivindica de um realismo mediático consiste precisamente na sua incapacidade de inventar enigmas, espaços de diversidade, limitando-se, a maioria das vezes, a decalcar figuras do real tomando-­as por denúncias ou instrumentos tecnológicos que em nada chegam a subverter a própria paisagem mediática vigente ou sequer a interromper o fluxo contínuo da alienação mass-mediática mais corrente.

Não é por acaso, de resto, que muita desta nova arte que reivindica o emprego da pintura como medium chegue daquelas regiões que foram longamente periféricas ao continente modernista. Kuitca, Galan, Sarmento, Senise ou Adriana Varejão não pertencem propriamente ao centro. Afirmaram-se fora dele e foram depois a ele puxados pela verificação da intensidade das respectivas obras.

Aquilo que a pintura destes artistas traz como evidência, como expressão e até como sentido, não é senão essa necessidade de re-impregnar a obra de uma intensidade imaginária que — podendo igualmente verificar-se através do emprego de outros media — se recusa no entanto a abandonar as possibilidades da pintura enquanto território aberto à expressão dessas realidades imaginárias capazes de configurar, pelo lado do sensível (e por isso tantas vezes a chamaram já neo­romântica), a percepção de outros mundos e de outras sensações que seriam incomunicáveis de outro modo. Assumindo quanto de inventivo permanece na sua tradição.

Foi Dawn Ades quem, a propósito justamente de Daniel Senise, o resumiu com muita precisão ao escrever que “não se trata de criar uma nova linguagem visual, e sim uma dialética entre o intangível e a matéria, o aleatório e o dado”, ou ainda quando referiu “o desejo por uma presença, na pintura, de algo que não é deste mundo (como o corpo ausente do sudário)”.

Tais realidades igualmente as referiu Gabriel Pérez-Barreiro ao aplicar as teses de Richard Wollheim sobre o seeing in (ver-em) à obra de Senise. Com efeito trata-se aí de recuperar um dos maiores enigmas que, de Leonardo a Max Ernst — já para não referir a pintura pré­-histórica — suscitaram o desejo do pictórico como forma por excelência de inscrever uma dimensão imaginária no mundo.

Pintores como Senise (ou, entre nós, como Sarmento) procedem precisamente a partir desta noção de realizar, através da imagem, uma certa forma epifânica de percepção do real — o intervalo em que alguém sai de um carro, a evocação de um som como o de um isqueiro a acender-se de noite, para dar apenas breves exemplos dessa instância do epifânico —, que na sua gênese remete para o que Duchamp chamava o inframince (que apressadamente traduziremos pelo intersticial), e que de outro modo seriam incomunicáveis.

Assumindo que a pintura é uma forma explícita de construção de imagens ao mesmo tempo que de revelação dos gestos do corpo no espaço bidimensional, produzindo em quem a vê pequenas iluminações cuja experiência descerra um campo para o que José Gil chamou inspiradamente o universo das pequenas percepções.

Aquilo de que se trata na pintura de Daniel Senise, tal como na de alguns dos seus  contemporâneos, não é senão da necessidade de regressar sobre uma certa experiência do corpo sensível, para exprimir através dela, e diante de quem se disponibiliza para essa aventura da sensação, a comunicação de um conhecimento sensível do real que, podendo embora ser dado em certos casos através de outros media, muitas vezes necessita da forma pintada para se dar a conhecer. Nesse sentido Man Ray pôde afirmar que só pintava aquilo que não podia ser fotografado.

Cliffs e Mountain de 1994, em laca e pó de madeira sobre tela, que em certa medida constituem como que negativos um do outro, explicitam muito bem este processo ao conseguirem conjugar por um lado uma certa evocação da memória da pintura (das paisagens distantes na janela dos frescos do primeiro Renascimento às aquarelas de William Blake ou de Victor Hugo, passando pelas figurações orgânico-fantásticas de algum Max Ernst), com as experimentações materiais e construtivas que os próprios elementos empregues autorizam, servindo tal conjugação para remeter o espectador para um espaço de experienciação espectral e de sugestão ambiental que comunicam sensações de desterritorialização e de estranheza imaginária.

Nas séries mais recentes do artista, em que de resto se recupera um método já empregue em obras anteriores, Daniel Senise capta, através de frottage (o método inventado por Max Ernst para obter por escovagem o negativo de uma determinada superfície), a imagem de chãos de estúdios de escultura em Nova Iorque. Depois, sobre essas imagens residuais, em que se sobrepõem manchas, linhas, rasuras que não deixam de evocar vestígios arqueológicos, acentuando sugestões de perspectiva ou simples diagonais, o artista redescobre ficções de arquiteturas incertas, cantos, vãos, esquinas, que tanto podem remeter para a realidade urbana como para interiores desolados de edifícios entregues ao mais solitário abandono.

Trata-se, naturalmente, da construção de um espaço fictivo, de referência arquitetônica, como tantas vezes ocorreu na sua obra, mas em que se equacionam questões novas ou se reelaboram outras, muitas vezes recuperadas do léxico do primeiro Modernismo, como a da dicotomia entre forma e fundo. Espaço fictivo que o é principalmente porque não toma a pintura pelo que ela já não é, nem pode voltar a ser — uma simples questão de representação ou de desfiguração do representado —, mas precisamente por quanto nela se configura uma forma de captar a imagem de algo que ainda não existia, mas que poderia ser objeto de um desejo (de uma ânsia).

Nesse sentido toda a pintura emergente do contexto pós-moderno é credora de algumas das mais fundamentais intuições do Surrealismo histórico. Sendo a principal das suas dívidas esta convicção de que a imagem, toda a forma da imagem, é o veículo por excelência da reposição do imaginário, sua única mediação com o mundo do visível é sua única possibilidade de se inscrever no mundo do visível.

Nesta medida aquilo para que a pintura deste notável artista nos remete é para esse espaço do ainda­não-haver (ou se preferirmos, do devir-visível), construindo-se de certa forma a partir de uma metodologia que opera pela tentativa de configurar um campo. De o gerar a partir de uma estratégia de dar passos em volta, precisamente por estar consciente de que aquilo que pretende mostrar não é, ainda, da ordem do visível, mas que o seu processo, sendo o de um devir­visível, permanece assim mesmo subtilmente ligado à esfera do invisível, da revelação momentânea (epifânica) de uma realidade outra.

Por isso o seu espaço mais essencial é sempre da ordem da ficção, através da qual se materializa, no próprio jogo das matérias e sempre a partir da trucagem aprendida na tradição da pintura — pense­-se por agora em Morandi ou em Friederich — o conhecimento de um território outro, a perder de vista, e sempre aquém e além de toda a imagem, que é o território do imaginário.

Sendo essa a sua fonte primeira e também a mais verdadeira, ela elabora-se ao mesmo tempo como paixão agreste da pintura da pintura e como distância impossível e quase que dramaticamente consciente da sua impossível concretização.

Paixão e distância sendo forças de oposição e de mútua exclusão, elas geram o dramatismo, o clima de tensão subtil de quase imperceptível em que se constrói o espaço de mise-en­abîme da pintura de Daniel Senise.

Daí o seu carácter espectral, a sua razão de não coincidência, a sua vertigem de invisível, mas daí também a sua eficácia visual, o seu rigor; a perplexidade diante da qual nos deixa, sempre com a sensação de havermos chegado um pouco depois ou um pouco antes do verdadeiro acontecimento. Nisso ela evoca as imagens de um Atget.

Se um acontecimento é, como julgo, a coincidência de um tempo com um espaço, a pintura de Daniel Senise, que opera por descoincidência, apresenta-se como um não-acontecimento, como um gesto subtil, imperceptível, que ameaça a ordem do visível. De onde a sua aparente impassibilidade, a sua serenidade, o seu sentido antiespectacular, mas também o seu carácter de ânsia daquilo que não há.

Descoincidência que opera, diante da paisagem visual que nos condiciona e nos atinge a todos, em fase da opressão mediática, como forma transgressora, ao mesmo tempo arcaica e avançada, de reabrir o caminho do imaginário. Aquele em que a liberdade está sempre em presença porque o imaginário é um território que nenhuma razão ou lógica dominam.

Subtraindo-­se a formas consagradas do circuito mainstream ou do visível consentido, a pintura de Senise liberta-nos para um outro entendimento das coisas. De outras coisas.

Voltar