Daniel Senise: O Reino e o Tempo, ou, O Tempo do Eterno – O Homem do Efêmero
Jorge Emanuel Espinho
Enquanto pródigo habitante do espaço físico, agente transformador e soberano desse meio tangível e tratável, o Homem cedo se confrontou com o inexorável e despótico avançar do Tempo, senhor supremo, absoluto e implacável; força maior com alcance e domínio sobre todas as coisas, fluxo imparável a relativizar e destruir todas as construções humanas, e o próprio homem.
É reduzido a uma inaceitável condição de ínfimo ponto ruidoso no infinito oceano do intocável Tempo Absoluto que o homem organiza a sua vida na relatividade pobre de um único artifício: o calendário, os séculos, os dias do ano, o relógio – uma algema tonta a contar-lhe o lento escorrer do tempo, já perdido. É enquanto habitante involuntário de um espaço estreito, à deriva, – suspenso que está e preso no seu irrisório movimento obrigatório de viver, – mergulhado no incomensurável manancial do Tempo que não alcança nem compreende, que as fúteis estruturas e construções que inventa lhe alimentam a ilusão de criação, de duração, de solidez, de mudança…
A característica principal contra a qual o homem luta, a sua finitude e a transitoriedade de tudo o que pensa, planeja e constrói, estará para sempre ridiculamente subjugada ao eterno e infinito existir do Tempo. O Tempo não avança nem recua, apenas é. E tudo o que nos resta será brincar a ser Deus, inventando ilusões de criatividade, pertinência e duração, obrigatoriamente distraídos nessa sobrevivência, alheios à suspensão estéril que o Tempo do Infinito impõe; tudo relativizando, tudo reduzindo, tudo terminando.
Parece ser que esta antiga e actual problemática, – desafio pelo homem sempre perdido, mas sempre aceite – de agir apesar do Tempo, se manifesta em forte presença na obra de Daniel Senise.
Encontramos no seu trabalho claramente evidenciados os dois planos, – a Acção do Homem e o Tempo Absoluto – não dogmaticamente apresentados mas relacionando-se sempre, conversando; no dramático e silencioso registro de uma sedutora plasticidade intemporal. O tempo que tudo toca como uma membrana leve mas transformadora, envelhecedora, manifesta-se e impõe-se a todas as imagens, todas as estruturas, todas as construções e ideias que o artista nos vai revelando, à maneira de uma história imparável de final predefinido mas sempre adiado.
Tudo isto apesar da existência inglória da Memória, depósito crescente e arrogante de coisas mortas, que vai aumentando, naturalmente inversamente proporcional ao tempo que teremos ainda pela frente. Nalguns trabalhos de Senise encontramos não estruturas suspensas no Tempo, mas sim compartimentos organizados – por vezes já corroídos e minados por ele, – que parecem referir-se a esta armadilha subjectiva exagerada pelo homem, a lembrança. A seriedade do trabalho do artista obriga-o a apresentar estes receptáculos/contentores do passado como eles na realidade são: vazios. Já que a sua real natureza é a de meros envólucros do que já foi, do que já não existe. Claro que também aqui foi o tempo o grande nivelador, imprimindo a sua firme marca autoritária e suspendendo/anulando todas as coisas…
Todo o trabalho de Senise se vai compondo num corpo crescente, coerente e único, que habita o silêncio intemporal onde tudo jamais acontece, onde todas as coisas são esboçadas, pressentidas, pensadas. Este ambiente fora da história apresenta-se com uma carga arquetípica, representativa de uma arqueologia do tempo onde pontua efêmera a circunstancial e frágil acção humana do pensamento.
Nalgumas das suas obras a conversa impossível entre estes dois planos, o Tempo Absoluto e a Acção do Homem no Mundo, parece querer resolver-se, encontrar uma síntese, uma resposta; ou talvez melhor, explicar num só lugar/objecto a impossibilidade de um encontro de facto.
A pintura Quase Infinito pertence a este grupo sumário. O símbolo de Infinito gravado à ferrugem e interrompido no seu movimento eterno, aponta claramente para a falibilidade do homem no tempo, a incapacidade de verdadeiramente o compreender, a estreiteza das representações que faz dele. A caducidade e limitação da linguagem simbólica é aqui assumida como um handicap na nossa relação finita e incompleta com o intemporal…
Também na série Bumerangue é a ferrugem que avisa da corrupção cruel que o tempo a tudo aplica, mesmo ao mais efêmero e leve dos movimentos. Esta crueldade manifesta-se particularmente nas sobras do tempo – a memória do que já foi – e parece ser também o tema da série Piscinas; lugares de lazer aqui saídos de um inalcançável passado que tinge essa beleza dos tons gastos e obscuros do tempo perdido.
Mas uma obra do artista se impõe em particular neste contexto, ao resumir de forma dramática e brilhante a subjugação silenciosa e nunca resolvida que o tempo absoluto impõe ao homem. Eva, instalação de 2009 apresentada no Centro Cultural São Paulo, coloca entre quatro paredes a escultura de Victor Brecheret do mesmo nome. Estas paredes são feitas de tijolos de catálogos e convites reciclados, e vão crescendo gradualmente ao longo dos dias até taparem por completo a figura humana, aprisionando-a até do olhar exterior. Se Eva simboliza a primeira mulher, o arquétipo da fertilidade, a mãe de toda a humanidade e a responsável pelo impulso que levou Adão (Homem) a comer a maçã da árvore do conhecimento; as paredes representarão claramente o inalterável avançar do tempo, o passado, o enorme branco que engole a história e reduz a patéticos pontos coloridos as palavras, as datas, os acontecimentos, as ideias e as aventuras que o homem continuamente persegue na sua ânsia de existir.
Se em 1995, na pintura Paisagem com Levitação, Daniel Senise nos mostrara literalmente a suspensão estéril e absoluta com que o tempo infinito trata a criatividade fértil do homem, também ali representada pelo feminino, nesta instalação somos postos perante a consumação lógica, irrecusável e eficaz dessa ideia.
Porém, se o Passado se vai impondo inexorável a todas as coisas presentes na vida do homem, também de Futuro se faz a sua reflexão e acção na vida. As estruturas que vamos encontrando ao longo desta imensa obra parecem remeter para as projecções que vamos fazendo na luta contra o tempo, revelando esse plano como um ensaio para um futuro feito de ideias, conquistas e projectos. Apesar da consciência da sua finitude e do efêmero de tudo o que cria e representa, o Homem continua a sonhar, a projectar, a construir; crente que nesse movimento pleno de Vontade de Infinito se vai esquivando à maquinação suprema do Tempo. Estas construções mais ou menos ordenadas contam da semente caótica mas profícua que germina da vontade humana.
Assim, longe de derrotado, o Homem parece querer continuamente enquadrar na sua vida feita de efêmero e transitório todo o tempo possível, ignorando a lei superior do Tempo Absoluto – que o suspende e lhe concede apenas um breve momento de existência no seu oceano gigantesco de Infinito. Seremos pequenos sobreviventes de um lento e contínuo acidente permanente, empenhados nessa luta corajosa pela vida.
Daniel Senise, engenheiro de formação que de alguma forma trocou as construções efêmeras do homem por simbólicas estruturas maiores que repousam suspensas no silêncio imperial do tempo, trabalha há trinta anos sobre esta temática primordial. Vai-nos revelando sempre um corpo de trabalho que compreende e sente a importância da acção e do sonho na vida curta do homem, mas igualmente a sua pequenez e inconsequência, enquanto releva também do domínio feroz do Tempo Absoluto sobre tudo. Se compreendermos toda a sua obra como um enorme espaço orgânico, – que vai crescendo e discorrendo em lenta deriva sobre a breve relação entre a curta existência do Homem e o corpo infinito do Tempo, – talvez nos aproximemos então da sua verdadeira poética, natureza e importância.
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)
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