Daniel Senise
Adriano Pedrosa
Texto publicado no catálogo da exposição do artista na Thomas Cohn Arte Contemporânea, São Paulo, em 1994
Uma tela de Daniel Senise nos diz que é impossível ter certeza.
É traiçoeiro o exercício da escrita sobre arte. Ao imprimir o texto escrito, é difícil evitar o caráter autoritário que ele assume sobre a obra de arte. Mais traiçoeiro é este exercício ainda quando se trata de obra que a um só tempo convida à interpretação e nega qualquer possibilidade de plena satisfação com ela. Assim são as pinturas do Daniel: sugerem e evadem narrativas, frustram o hermeneuta. Como percorrer caminhos tão incertos? A escrita de arte pisa em terreno esquizofrênico, mas ao contrário de sua prima cega, a crítica de arte, ela bem sabe disso.
Trata-se de uma espécie particular de autor. Um autor que reconhece a morte do signo, a do sujeito e a da história. É como se o artista dissesse: “o que devo fazer com estes restos de coisas, com este mundo de insignificâncias, jogadas no cotidiano, sem nenhum valor moral, plástico e estético?”. Nesse panorama, significante e significado não são mais duas faces do mesmo papel, o que há são infinitas cadeias de metáforas, um mundo de (im)possibilidades.
O que faz então o autor, com sua pujante herança moderna? Mata-se. Abre mão do domínio, da posse, enfim, da autoria de sua própria obra. No jogo interpretativo que as pinturas do Daniel convidam, a morte do (seu) autor (e do crítico, e do hermeneuta) anuncia o nascimento do leitor, do espectador. Estamos diante de pinturas incompletas, textos scriptibles que pedem para ser reescritos pelo leitor — quem deseja completá-las, conferir significados a significantes que se recusam a se fixar a um só significado?
Uma obsessão com a morte — do signo, do autor, do sujeito, da história — manifesta outros sintomas: a eleição da pintura, esse meio que já teve sua morte anunciada tantas vezes, é um deles. Daniel não ignora tantos anúncios: sua pintura está de luto por seu próprio meio. Um estado de espírito penoso, uma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor, um afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre ele.
O que pintar? Pinta-se a morte da pintura e a do autor. Ela que não está é uma série de pinturas feitas a partir de um afresco de Giotto para Capela Bardi, em Florença, obra que Daniel e eu conhecemos apenas de reprodução: uma cena religiosa, um santo morto rodeado por padres que choram sua morte. O que chama nossa atenção é uma falha: talvez um descascamento do afresco, talvez alguma matéria que se afixou a ele — não importa. A falha é figura, e o gesto do Daniel é pintá-la; apropria-se da não pintura de Giotto, usando para isso não tintas (limalha de ferro, verniz asa de barata). Incapaz de adotar um novo objeto de amor, o pintor recorda e retorna ao primeiro pintor da moderna história da pintura. Numa para-apropriação, ignora Ela (a obra daquele que anuncia o Renascimento) que aqui não está, para sugerir outras figuras: uma forma arquitetônica, a casa e o sudário de Giotto.
Pinturas post-morten têm uma vocação para arqueologia — uma investigação dos vestígios das coisas. A autópsia das imagens descasca e raspa o fundo do quadro fin de siécle. Sua materialidade específica constitui-se em imagem do precário e do velho. Por isso mesmo o ar envelhecido das pinturas não pretende simular uma idade que elas não têm.
Pintor de figuras, Daniel é um amador de signos em seu duplo sentido: ele os ama, e é um diletante sobre a matéria — há por acaso um profissional dos signos? Nesse mundo de restos de coisas, um amador de signos não lamenta sua morte, ao contrário: faz do junkyard seu playground. Não sem traumas. O luto, com sua disposição dolorosa, (conta)mina seu repertório: ossos, dentes, unhas, caveiras, pregos, espinhos, ex-votos, sudários, figuras fantasmas. Há mesmo um réquiem, Tower of song, oito pinturas epigrafadas: “dedicado a Leo”, o amigo morto em 1993. E um cisne, que em Beddangelina (literalmente, “a tumba de Angelina” no idioma galês), foi ironicamente pintado de cabeça para baixo, a partir de um pequeno bibelô de plástico, uma bugiganga desprovida de qualquer significação.
Beddangelina remete a uma fixação não somente com a morte, mas com a figura da mãe também. A investida do Daniel é agora ao retrato último da mãe do artista: Arrangement in black and white no. 1, the artist’s mother, de James Whistler. Nas mãos do Daniel, ela se torna uma silhueta de pregos, boneca de vudu, a imagem da mãe de Norman Bates na janela. Figura mumificada sobre fundo, objeto da arquitetura, a mãe do artista pode sofrer operações formais: duplicada, transformada em negativo. Afinal, a apropriação no junkyard é infiel ao original e desconhece notas de rodapé. Enquanto recordação e retorno, suas feições seriam moribundas se o sujeito não tivesse consciência da irreversibilidade da morte de seu objeto de amor — ele se foi e nada poderá trazê-lo de volta.
Embora tente. Como em algumas Paisagens, janelas que recordam e retornam ao romantismo e ao simbolismo, mas sabem jamais poder revivê-los. O revisitado aqui é Caspar David Friedrich com seus espectadores solitários e melancólicos, que, de costas para nós, espectadores da pintura, contemplam o silêncio, a natureza, o desconhecido, o solene. No Daniel, os espectadores de Caspar são sujeitos mortos. Transpostos para Paisagens: do dia seguinte, contemplam um ruído branco, uma janela para o mundo da cultura, um mundo de insignificâncias e de incertezas.
A morte, já se disse, é a única certeza da vida.
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