Construções sobre a pintura
Gabriel Pérez-Barreiro
Texto publicado no livro do artista “Daniel Senise – Ela que não está”, Cosac & Naify Edições, São Paulo, 1998
A obra de Senise foi muitas vezes considerada como exemplar do “retorno à pintura” ocorrido nas artes visuais durante a década de 1980. Como tal, ele é visto como um equivalente brasileiro de Anselm Kiefer, Guilllermo Kuitca ou Rainer Fetting, três artistas que lideraram o renascimento do interesse pela pintura como um meio expressivo, numa reação contra o conceitualismo da década de 1970.
Uma leitura assim da produção de Senise, contudo, não vai além de uma mera similaridade de certas características típicas da nova geração de artistas pictóricos: quadros de grandes dimensões, certo romantismo, um conjunto sugestivo de imagens etc. Logo se torna aparente que a obra de Senise encontra-se de fato muito distante da pintura tradicional, pelo menos na superfície. Para começar pela contradição mais óbvia, muitos dos trabalhos recentes do artista nem sequer são “pintados”, mas antes construídos a partir de camadas de materiais tão diversos como ferrugem, voile, resina, cola ou poeira. Na verdade, muitas de suas obras recentes não usam nenhuma tinta. Além disso, há nesses quadros uma ausência de gestos, exatamente a característica que se supõe esteja sendo redescoberta pelos novos pintores. Por fim, embora não existam dúvidas quanto à presença de um impulso e uma atmosfera românticos nos trabalhos de Senise, isso ocorre sem nenhuma referência a sistemas culturais específicos, tais como a psicanálise ou a mitologia nacional, que dão sentido à obra de tantos de seus contemporâneos.
A despeito de tudo isso, as obras de Senise revelam uma enorme preocupação com a pintura. Um de seus traços mais interessantes é o modo pelo qual se empenham em complexos discursos sobre a natureza do conjunto de imagens e o modo de representação originário do mundo da pintura e a ele pertencente. Desse modo, seria possível argumentar que a pintura é o tema das obras de Senise, ainda que nem sempre seja sua técnica. Elas são na verdade construções sobre a pintura.
A Morte da Pintura: Um Mito Modernista
Um dos inúmeros problemas de se falar de um “retorno” à pintura não é só o fato de que a pintura nunca morreu, mas também o de que, enquanto questão e preocupação, ela sempre esteve no centro das discussões modernistas. Como escreveu Michael Phillipson:
“No âmbito das artes visuais e talvez em todas as áreas em geral, é no âmbito da pintura que a questão da modernidade foi disputada e elaborada de maneira mais explícita. Desde o surgimento do comprometimento modernista até a época pós-moderna a pintura esteve no próprio cerne dos debates críticos, tanto no campo da arte (entre os artistas) como no domínio da prática crítica/analítica(1).”
Durante o século XX, segundo a história hoje mais corrente, a pintura descobriu seus atributos intrínsecos, sobretudo a “planaridade”. Em conformidade com o discurso linear e hegeliano do modernismo, a pintura só alcança a realização de si mesma na medida em que reconhece e adota essa “planaridade”. No entanto, até mesmo os abstracionistas mais radicais logo perceberam haver na pintura um poderoso contrapeso que criava ilusão mesmo no interior da forma mais pura e ascética. Uma linha diagonal sobre uma base branca, por exemplo, sempre sugere profundidade e movimento, por mais plana e anti-ilusionista que seja a linha ao ser aplicada à tela. Seja como for, o discurso da “planaridade” revelou-se forte o bastante para polarizar o mundo artístico durante a maior parte do século, e continua sendo até hoje uma das dualidades e contradições que nem mesmo o pós-modernismo conseguiu reconciliar.
Todavia, sempre existiram pintores que, correndo o risco do ridículo e do isolamento em relação aos críticos estabelecidos, defenderam o plano do quadro, a tela, como um campo de ação sobre o qual e no interior do qual poderia ocorrer uma ação significativa. Nem sempre isto implicou uma volta ao realismo fotográfico, o que se comprova no caso de Francis Bacon, um artista que foi capaz de retomar um realismo brutal ao mesmo tempo que continuava a respeitar as possibilidades modernas de manipulação da tinta sobre a tela. Na realidade, uma das características notáveis do século XX foi a capacidade da pintura de se reinventar enquanto meio. Como descreveu Dore Ashton:
“Há algo ridículo e mesquinho nos mitos que herdamos da arte abstrata – que a pintura é autônoma, pura e para si mesma… A pintura, porém, é “impura”. São as sistematizações da impureza que forçam a continuidade da pintura(2).”
O conceito de “impureza” pode nos ajudar na leitura da obre de Senise. Em um nível quase acidental, os quadros de Senise frequentemente incorporam elementos extraídos de seu ateliê em cujo piso ele coloca a superfície das telas a fim de que acumulem sujeira, pó e resíduos, os quais então passam a fazer parte do padrão geral e da elaboração da obra. Quanto aos temas, são apresentadas imagens que muitas vezes trazem referências culturais específicas (história da arte, catálogos comerciais, etc.), mas estas são mostradas de maneira descontinua, com saltos narrativos que impossibilitam uma leitura direta. Em algumas obras recentes, a superfície da tela é invadida por formigas; em outras, por ossos ou silhuetas que levitam. Em todos os casos, o relacionamento entre as figuras só poderia existir graças ao artifício do plano pictórico, um espaço que habitam e negam simultaneamente.
Ao criar esse mundo artificial, Senise não apenas está chamando a atenção para a artificialidade da pintura em geral, como também redefinindo seu relacionamento (e, por extensão, o do observador) com o mundo visual mais amplo. Essa atitude pode ser reconhecida em vários artistas contemporâneos que, embora extremamente diferentes em termos de estilo e conteúdo, também procuram fazer da arte um instrumento para a compreensão direta do mundo físico, sem a intermediação de um complexo aparato teórico. O escultor britânico Tony Cragg é um desses artistas, e seus comentários indicam claramente essa criação de um universo artificial que seja um “modelo de pensamento”:
“Meu interesse inicial na produção de imagens e objetos foi, e continua sendo, a criação de objetos que não existem no mundo natural ou funcional, e que sejam capazes de refletir e transmitir informação e sentimentos sobre o mundo e minha preorpia existência… Acredito que precisamos fazer imagens de objetos que sejam como modelos de pensamento a fim de facilitar nosso caminho pelo mundo.(3)”
Os quadros de Senise pertencem a um mundo semelhante, entre o reconhecimento e a fantasia. Em especial, aquelas obras que incorporam a paisagem – como Paisagem com levitação [Ver Imagem], Na estrada [Ver Imagem] e Sem título [Ver Imagem] – pairam entre a tradução realista de uma paisagem romântica e a aparência esquisita de figuras emprestadas da história da arte. Tais justaposições abrem universos inteiros de possibilidades pictóricas e filosóficas, sobretudo por não proporcionarem nenhuma indicação ou chave para a descoberta de um “sentido” oculto. Elas são construções de um silêncio eloqüente e, enquanto tais, um desafio direto à predominância da conceitualização na arte contemporânea. Os quadros de Senise devem ser vivenciados em termos visuais, e nenhum sistema externo ao visual nos ajuda na leitura deles.
“Ver em” e Representação
Se as obras de Daniel Senise são puramente visuais e pertencem à tradição da pintura, como já se argumentou, talvez seja útil examinarmos os aspectos artísticos que definem sua atividade como especificamente pictórica. Como mencionado, o artista constrói suas telas em vez de pintá-las, mas o modo pelo qual a imagem é engendrada e processada recorre às mais antigas tradições de pintura. Ao discutir a pintura enquanto arte, Richard Wollheim identifica o que chama de “ver em” (seeing-in) como a chave da representação visual(4). “Ver em” é a capacidade – única nas artes visuais e na pintura em especial – de sugerir formas sem descrevê-las em todos os detalhes. Um bom exemplo seria o conselho dado aos artistas por Leonardo da Vinci, para que contemplassem as manchas no muro até que delas emergissem as figuras. Outro exemplo seria o modo como reconhecemos formas nas nuvens e na fumaça. Na história da arte, o uso quase abstrato de tinta que Velázquez adota para sugerir formas é um exemplo justamente celebrado. De acordo com Wollheim, “ver em” tem uma relação direta com a formulação da pintura enquanto arte, devido à sua dependência da imaginação do observador para completar a obra do artista. “Ver em” baseia-se em um modo específico de percepção que Wollheim descreve como “duplicidade” (twofoldedness), referindo-se à habilidade do pintor para criar superfícies que são ao mesmo tempo superfícies abstratas e representações de um objeto externo.
Qualquer trabalho de Senise ilustra com exatidão esse conceito de “ver em”. Em obras como Igrejinha (1991), o uso da fumaça quase poderia ser uma referência direta a exercícios visuais do tipo recomendado por Leonardo da Vinci. A incorporação mais recente de pregos reais (em vez dos pregos pintados que apareciam em quadros mais antigos) também contribui para criar essa tensão entre a leitura da matéria física (os pregos) e a imagem (a mãe do artista, trilhas de bumerangue, anéis etc.). Da mesma maneira, o fundo ricamente texturizado de obras como Sem título (1988) [Ver Imagem] ou Sem título [Ver Imagem] cria grandes áreas que podem ser preenchidas pelos olhos e pela imaginação, e que o artista deliberadamente deixa indefinidas. Em conseqüência, as obras de Senise estabelecem um relacionamento ambíguo com o espectador, precisamente pela dificuldade de se atribuir qualquer intenção a elas.
As grandes áreas não decifradas nos quadros de Senise não servem apenas como pano de fundo para as figuras centrais, mas antes como parte intrínseca do exercício do olhar para uma pintura. Embora essas áreas não se definam em figuras ou cenas, isto faz parte da intenção do artista. Wollheim reconhece esse tipo de obra nos seguintes termos:
“Há um tipo de pintura que está a meio caminho da representação. Há quadros nos quais é correto vermos algo – ver algo em vez de ver nada – mas não há nada – não há nenhuma coisa – da qual seja verdadeiro afirmar que seja correto vê-la no quadro.(5)”
Em outras palavras, ainda que as áreas mais indeterminadas de suas obras talvez não contenham nenhuma figura explícita, parte da intenção das pinturas pode estar contida nessas passagens em que o olho é obrigado a “ver em”. O que Senise parece estar enfatizando é que a pintura não é só uma questão de pincel, tinta e gesto, mas antes o modo pelo qual as imagens são criadas e sustentadas pelo plano pictórico. DIFUSÃO E DENSIDADE
Se, como sugeri, parte do propósito de Senise é difundir o sentido através e no interior da superfície de suas obras, uma das maneiras pelas quais realiza isto, além de “ver em”, é por meio da criação da densidade. Em um nível, a construção efetiva de suas obras produz uma densidade física, sobretudo graças ao uso do voile para acumular camadas, o que evita que a construção se torne um relevo escultural pela unificação da superfície. A trama fina e a transparência do voile produzem um efeito ilusório na superfície, ao mesmo tempo sugerindo e negando uma profundidade física na própria tela. O voile também serve, em alguns casos, para difundir a luz de modo a se obter um efeito óptico e cinético, o qual, por sua vez, desmaterializa a superfície.
Os temas são outra maneira pela qual o artista cria densidade em suas obras. Assim como muitos de seus contemporâneos, Senise faz amplo uso das “citações”. Estas, na última década, ficaram associadas ao pós-modernismo, sobretudo no que se refere à citação de estilos e motivos históricos. Em muitos trabalhos contemporâneos, essas “citações” são carregadas de ironia e às vezes constituem o próprio tema das obras, como nas fotos de Cindy Sherman. Se, como indiquei, as obras de Senise não estão preocupadas acima de tudo com leituras ou temas narrativos, e sim com os processos e as possibilidades da pintura, o emprego de manipulações irônicas significaria a aplicação de um código contraditório ao principal interesse da obra. Por esse motivo, a meu ver, o uso das citações ocorre justamente para criar densidade.
O repertório temático de Senise é restrito e a maioria das figuras é extraída da história da arte ocidental. As escolhas são excêntricas, indo de Giotto às silhuetas do século XVIII e ao retrato que Whistler fez da sua mãe. Seria difícil reconhecer qualquer intenção ou programa específico nessas escolhas e o mais provável é que sejam determinadas por obsessões pessoais. O próprio ato de citar inevitavelmente desencadeia uma série de ressonâncias e memórias no espectador, que podem ou não corresponder às do artista; mas, de qualquer modo, terá sido gerada uma densidade visual e cultural. Em alguns quadros, esses empréstimos são reelaborados ainda mais, com o artista trabalhando no interior do negativo das imagens. Por exemplo, em Sem título [Ver Imagem] , em Cliffs e Mountain[Ver Imagem] & [Ver Imagem], ou em Sem título [Ver Imagem], Senise trabalha com os efeitos tradicionais de ilusão produzidos por negativos visuais, neste caso obtendo um vaso a partir do espaço negativo entre duas figuras sentadas. Esse tipo de efeito visual foi muito usado pelos psicólogos da Gestalt, e talvez haja um leve trocadilho no uso pictórico que Senise faz do motivo , tendo-se em conta que a Gestalt foi um dos principais sustentáculos da arte abstrata e conceitual do século XX, e com freqüência foi especificamente associada ao neoconcretismo brasileiro, um dos muitos movimentos que decretaram a morte da pintura.
O uso do negativo é retomado na série Ela que não está [Ver Imagem]. Aqui o artista nos apresenta a forma delimitada pelas áreas que haviam sido danificadas nos afrescos de Giotto sobre São Francisco. Ainda que seja imediatamente reconhecível por muitos – pois consta de livros de história da arte, cartões-postais e imagens turísticas -, essa forma constitui um motivo não intencional e que nunca chegou a ser visto pelo próprio Giotto. Mais uma vez, Senise chama a nossa atenção para aqueles aspectos da iconografia que estão presentes e ausentes (daí o título da série), ao mesmo tempo sugerindo que as imagens pertencem tanto ao âmbito do inconsciente como ao da consciência. Em parte é isto o que torna tão potentes as imagens desse artista: a capacidade que elas têm de reter uma qualidade mágica, que não pode ser explicada recorrendo-se ao conteúdo, à narrativa ou às circunstâncias.
1 Michael Philipson, Painting, Language and Modernity, Londres, Routledge & Keegan Paul, 1985, p.22.
2 Dore Ashton, A Critical Study of Philip Gaston, University of California Press, 1976, p.2.
3 Tony Cragg, apud Germano Celant, Tony Cragg, Londres, Thames and Hudson, 1996.
4 Richard Wollheim, Painting as Art, Londres, Thames and Hudson, 1987.
5 Richard Wollheim, ibid., p.50.