Biógrafo
Júlia Rebouças
Texto publicado na exposição Biógrafo, realizada na galeria Silvia Cintra, no Rio de Janeiro, no ano de 2018-2019.
Como uma espécie de denominador comum, formas retangulares de natureza abstrata se impõem nas obras de Daniel Senise, reunidas nesta exposição sob o título Biógrafo. Se em dado momento estão incorporadas à composição, como telas ou tapumes, em outros podem insurgir-se extemporaneamente contra o tema, como se obstruíssem o que seria a visão total da obra. No regime que habitamos, imperioso na incessante produção de imagens, acessíveis quase sempre por meio de aparatos de emissão de luz, esses elementos opacos e flutuantes podem parecer, à primeira apreciação, com manifestações do vazio, para em seguida revelarem-se prenhes daquilo que as obras ofertam à visão – reminiscências de lugares, acontecimentos, gestos, afetos, ecos de outras obras e, sobretudo, modos de ver. Saltando à superfície de cada um dos trabalhos, essas formas são a um só tempo estrangeiras às composições e familiares às matérias. O que Senise nos sugere, portanto, é um jogo de crença e de desilusão sobre o que está posto diante de nossos olhos, quando nos perguntamos o que falta na imagem, ou o que sobra. Tal como colocado por George Didi-Huberman, a partir de uma proposição de James Joyce, o que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha.
Embora sejam inseparáveis, é na cisão paradoxal entre essas duas instâncias que compreendemos a visão. O que nos olha, para Didi-Huberman, é da natureza do vazio, e qualifica o que vemos. A constituição do que é visível, a despeito de sua evidência retiniana, estaria condicionada à presença física das coisas, não sendo possível dissocia-la de seu apelo tátil, de seu volume como corpo. Ver, como um ato, implica portanto a travessia pela existência material, ainda que possa desembocar naquilo que não é tangível ou que não há. No registro do Hospital Matarazzo, um tapume preto anula o centro da fotografia onde se poderia ver a escada do edifício institucional cujas paredes são brancas e estão descascadas. O mesmo elemento preto está duplicado, de relance na imagem, e a escada, com sua feição em dobra, está presente ainda que não visível em sua totalidade. O retângulo que a apaga ajuda a cria-la e embora sobreponha-se à cena ele mesmo faz parte do ambiente retratado.
Nesta exposição, Daniel Senise apresenta oito obras produzidas entre 2017 e 2018 que são, por sua vez, parte de séries numerosas, ainda em desenvolvimento. Podemos inferir, dessa feita, que são hipóteses de uma tese que é elaborada pari passu com as imagens, e que não se conclui. Ainda que sejam oriundas de ideias distintas, aqui estão reunidas como forma de especular sobre a qualidade do que pode ser visto. Não é por acaso, portanto, que os trabalhos desta mostra tratam de dispositivos de apresentação e consagração de imagens, como a superfície de um outdoor ou as paredes de museus e galerias. Em 2000, assim, começa a realizar pinturas que reproduzem espaços internos de instituições de arte ao redor do mundo, de modo a replicar a arquitetura. Mais tarde, em 2014, no lugar onde estariam as coleções, passar a inserir texturas como se seu conteúdo original tivesse sido subtraído ou transmutado numa existência abstrata. O exercício de construção de perspectivas trata do espaço como condição e ao mesmo tempo ilusão.
Uma vista interna do Museu de Artes de Nantes, instalado num palacete do século XIX, soma-se a uma visada de uma sala do Dia Beacon, um prédio industrial ao norte de Nova York adaptado para receber uma coleção de arte do Pós-Guerra. Integra ainda o recorte uma imagem que replica o interior da Capela Rothko, no Texas, inaugurada em 1971. A estrutura octavada abriga quatorze pinturas de Mark Rothko, todas de um preto profundo, que ainda assim abrigam nuances de cor que se revelam aos poucos. Na obra de Senise, o tom fugidio é retomado com uma grossa camada de carvão. Por fim, um relance do Museu Louvre atravessa os espaços e conecta-se com a série seguinte: Biógrafo LIII (Louvre) (2018), que retrata salas com uma dezena de pinturas sobre as paredes, marcadas por molduras que carregam conteúdos desconhecidos. No primeiro plano, uma incisão tal como a matéria dos quadros, impõe-se. De cores terrosas, a pintura é realizada a partir da colagem de distintas monotipias sobre tecidos, elaboradas no contato com o chão.
Em sua prática artística, Senise experimenta desde os anos 1980 diversas maneiras de construir imagens, alargando o espectro de gestos, matérias e procedimentos daquela que se consagrou como a linguagem de seu maior interesse, a pintura. Nesse sentido, por exemplo, passa a replicar em lonas e tecidos a superfície de solos e assoalhos, que gravam os veios e nós da madeira, mas também suas marcas, resíduos, registros de acontecimentos e tempos transcorridos. A complexidade do solo, quase sempre invisível sob nossos pés, toma a tela do artista por meio de colagens e transposições. A evidência da matéria registrada pelas monotipias só se dissuade pela habilidade técnica da construção de suas composições, que ludibriam a qualidade da verdade em favor da ficção representada. Dos primeiros experimentos derivam, assim, uma gama de tons amarronzados tal como chãos, que se acumulam no ateliê do artista como sua paleta preferencial, e que evocam a incorporação ainda nos anos 1990 da ferrugem como elemento da pintura, cuja cor também é índice da passagem do tempo implicada na oxidação.
As marcas de vida e trabalho aparecem mais uma vez na série Quase aqui, que realiza desde 2011 e parte de bases de madeira aproveitadas como mesas em seu ateliê. Gastas, com cortes, sulcos e incisões em virtude do uso, essas superfícies recebem um retângulo branco de tinta a óleo no seu centro, que parece ter constituição inefável. Não é possível registrar resquício da mão ou do gesto. Em contraste com o entorno marcado, a forma branca imaculada parece questionar a natureza da pintura, se feita de trabalho ou de ilusão. De alguma forma, as obras subsequentes da série Biógrafo, produzidas a partir de 2013, referem-se a essa presença de uma forma que não está contida, mas que pertence à composição. Contrariando a expectativa de aproximação da realidade, o artista macula as perspectivas espaciais com uma presença retangular que, mesmo que em primeiro plano, não almeja revelar nada que não a própria natureza abstrata de sua matéria. A despeito da profundidade construída, essa inserção está presa à camada mais superficial da obra, como se evidenciasse a qualidade bidimensional da imagem e convocasse-nos a encarar a natureza misteriosa do que conhecemos. O centro da pintura, que numa composição clássica guarda o tema principal, está encoberto por essa forma retangular que, ainda que tenha afinidade com o contexto expandido, está ali impondo-se como não imagem. No processo de elaboração da pintura, Senise pode girar esse retângulo, fazendo com que seja lido em diferentes direções ou que simplesmente contrarie a posição estabelecida para a pintura.
Biógrafo é constituída por 85 obras que, apesar de numeradas em seus títulos, não são produzidas em sequência. Quando descreve a origem desta série, Daniel Senise menciona o pai, que era piloto de avião e que durante as décadas de 1950 e 1960 realizou um conjunto vasto de fotografias durante suas viagens. Com sua morte, o artista herdou as imagens, que registram pessoas, locais e ocasiões que são desconhecidos para ele. Para além do que descrevem como conteúdo retratado, essas fotos podem ser pensadas como um quebra-cabeça que nunca se conclui e que deixa rastro, peça a peça, sobre formas de ver. Nesta exposição, que toma emprestado o título da série em questão, Biógrafo, o artista olha para trás e especula sobre as narrativas da vida de um outro, enquanto olha para frente e exercita sobre as possibilidades de enxergar. Fecha os olhos e vê, diz James Joyce em Ulisses.
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