Daniel Senise

Atravessamentos e outros destinos: A Pintura como Resto

Flávia Corpas

Texto publicado em Quase Aqui: Daniel Senise, Associação para o Patronato Contemporâneo, São Paulo, 2018

“A pintura me atravessa”. Não tenho certeza de ter ouvido Daniel Senise dizer essa frase. Mas também não duvido. Seus trabalhos, mesmo as instalações ou os objetos, partem da pintura, das questões que a pintura coloca para esse artista, mesmo quando suas obras se concretizam sob diferentes suportes. Digo eu, então: a pintura o atravessa.

Lembro, contudo, e disso tenho certeza, de que a respeito de Sansão, trabalho montado no Parque Lage em 1984, ele afirmou: “uma instalação que parte da pintura”. Não simplesmente porque Sansão era também uma pintura, mas porque a pintura se fez instalação. Trata-se de uma obra do início de sua produção artística, mas que já carregava o que Senise vem explorando como artista: as vicissitudes da pintura.

2.892, instalação montada em 2011, na Casa França-Brasil. Lençóis recolhidos em hospitais e motéis ocupam toda a extensão da galeria principal. Um trabalho constituído de resíduos sobre tecido, como certa vez explicitou Senise.

É possível pensar a arte como uma operação com o resto, algo que a leitura de proposições empreendidas tanto por teóricos da arte, como Hal Foster e Georges Didi-Huberman, quanto pelo psicanalista Jacques Lacan, ao qual recorrem os dois autores referidos, nos permite afirmar.

Poderíamos pensar o resto pela via imaginária, do sentido estabilizado, seu caráter temático ou seu significado em uma obra. Mas aqui não é disso que se trata. Senise vai mais além, sua obra toma para si o resto mesmo, se faz dele. Isso que resta, e que o artista de alguma forma colhe, é também um excesso. Há um excesso na vida, nas coisas do mundo, no chão dos ateliês, que impressos sobre tecido escrevem as marcas do que sobrou do espaço e do tempo, compondo e colorindo várias pinturas de Senise, como as séries Biógrafo, Reino e Prodrome, dentre outras. Há um excesso nas mesas de trabalho, cuja intervenção do artista ao longo do uso cotidiano e transfigurada por uma nova interferência material e conceitual, dando origem a uma obra que é quase aqui, mas não ainda; real que o quadrado branco central pintado não deixa de tentar preencher e de malograr, falhar. Há um a mais em um quadro que, após muitos anos pendurado, é retirado da parede, deixando marcas, um resquício que talvez diga respeito ao próprio evento que precipita sua retirada, a morte da mãe e o desfazer de sua casa, mas que ao revelar seu vazio vira uma fotografia, material ou inspiração para trabalhos futuros. Por fim, há um excesso nas sobras das silhuetas recortadas de pessoas, expurgo do fazer de um artista das ruas, que Senise recolhe na intenção, ainda não concluída, de que um dia encontre para elas algum lugar no impossível de representar.

Um resto que é excesso e, portanto, um a mais. Um excesso que se apresenta como um vazio, que não deve ser pensado como um mero nada, mas sim em seu sentido topológico, como furo. A arte, a pintura especificamente, se organiza em torno do vazio, premissa apontada por Jacques Lacan em seu Seminárío 7: a ética da Psicanálise. Pensando esse vazio como um furo, algo que encontraremos no desenrolar do ensino de Lacan, podemos dizer que em torno do furo se faz a arte, uma vez que é o próprio fazer da obra que engendra o furo no campo da linguagem. Trata-se de caminhos propostos pelo psicanalista francês, ao longo de seus seminários, por meio dos quais a arte e a psicanálise podem manter vivas suas interlocuções, que no caso da segunda é parte de sua origem.

Toda a problemática do resto pode ser pensada ainda a partir da questão da representação, tão cara à arte e à pintura. Penso aqui na representação tradicional, mas também em seu esgarçamento, o que confere ao conceito acepções mais amplas, como sugerem, cada um a seu modo, Arthur Danto e Didi-­Huberman, ou mesmo um contraponto a tal noção por meio do que Jacques Rancière nomeou como “regime estético”. Em todo caso, pensamos que aquilo que a questão da representação e da imagem nos coloca, sejam tais imagens figurativas ou não, é que elas não se prestam a abarcar, a agarrar integralmente, o que está em jogo em uma obra. Didi-Huberman propõe que se pense, com Freud, a imagem como rasgo, um processo que abre a representação. Algo escapa, há um resto nessa operação. Há um limite.

Em A pintura encarnada, Didi-Huberman afirma que há um fantasma na pintura, algo que ele aborda através da noção do encarnado. Se o encarnado tem a ver com a pele, a carne, a superfície, é tão somente em sua dialética, imprevisível e indiscreta, com a profundidade. O autor se volta para o drama de um personagem criado por Balzac, em A obra-prima ignorada. Esse conto é leitmotiv que o conduz em sua reflexão. Didi-Huberman toma o encarnado a partir de algo além, que o personagem já parece evidenciar, visto que ele mesmo, sem querer, denuncia um a mais. O encarnado é entendido, então, como entremeio, como uma estrutura de dobra, trança de superfície e profundidade, que configura uma dialética do aparecimento (épiphasis) e do desaparecimento (aphanisis). Mas no que se sustenta esse movimento de aparecimento e desaparecimento na imagem?

O autor recorre, então, a Lacan, e se propõe a pensar a relação sujeito/objeto, trazendo para o universo da pintura um corpus teórico de outro campo, a psicanálise, mas que, certamente, também lhe diz respeito. A divisão constitutiva do sujeito, fruto de tal relação, como defende Lacan, é também o que define, segundo Didi-Huberman, o que ele chama de “sujeito da pintura”. Da operação que instala o sujeito, como pensado pela psicanálise, se extrai um resto — o que Lacan chamou de objeto, objeto causa do desejo. O que vem no lugar do que não se pode representar, sendo assim uma espécie de representante vazio ou furado, o que vem no lugar de, e não uma representação. Assim como o sujeito, aquele da definição dada pela psicanálise, o “sujeito da pintura” se vê enodado em sua relação com esse objeto.

Resto, vazio, furo, objeto a. Todos são termos a que recorremos como forma de dar algum contorno ao irrepresentável de nossa experiência com o Outro, com a linguagem. O que se coloca aqui é o fato de que o sujeito, e também o “sujeito da pintura”, esbarra em um limite e com ele terá que se virar. E o fazer do artista — o que inclui os diferentes procedimentos e soluções que ele possa encontrar até o resultado final concretizado na obra — é uma forma de lidar com tudo isso, é o exercício com o limite, este que é também o paradigma a partir do qual a arte trabalha. Como nos lembra Didi-Huberman, ali mesmo onde se anuncia o limite da pintura, o encarnado como resto também se expõem os paradigmas nos quais a pintura, efetivamente, trabalha.

O resto insiste na produção artística de Senise. Os procedimentos adotados pelo artista, manipulações com os restos, nos permitem propor tal ideia. Me parece que Senise parte do resto, limite e paradigma de sua pintura, para fazer pintura, sendo isso também o que orienta o fazer de seus objetos e de suas instalações que são, como afirmamos, atravessados pela pintura.

Chama a atenção, no conto escolhido por Didi-Huberman, o fato de Frenhofer, o pintor atormentado e personagem principal, ter observado que algo essencial faltava à pintura de Porbus, outro personagem- -pintor do conto. Algo estava ausente, ainda que a obra de Porbus pudesse ser considerada, em seu meio, uma obra-prima. Faltavam a ela os efeitos, o sangue, a vida! Havia um resto ali enunciado. “A missão da arte não é copiar a natureza, mas expressá-la! Não és um vil copista, mas um poeta”, exclama Frenhofer enlouquecido. Se a oposição entre copiar e expressar ou copista e poeta já nos remete à questão, amplamente debatida, da representação, isso não significa que ela aqui se esgote ou mesmo se resolva circunscrita às problemáticas da pintura na modernidade. Tudo isso, nos lembra Didi-Huberman, é uma “questão infernal”, que não nos dá descanso. Tão debatida quanto é antiga, trata-se de uma problemática inerente à própria pintura e que atravessa o tempo.

E como, nos dias de hoje, ler a exclamação de Frenhofer? Ao se debruçar sobre as questões abertas pelo conto, que perpassam toda a história da pintura, Didi-Huberman nos convida a pensar a problemática da imagem e da pintura na contemporaneidade. Extraindo do texto as vicissitudes da relação sujeito/objeto, o autor aborda a instigante questão do olhar, já evocada por Merleau-Ponty e Lacan, cuja tese central poderia ser resumida por meio do título de outro livro seu, dedicado também a essa reflexão: “0 que Vemos, o que nos Olha”. O que vemos na pintura, na verdade, nos olha. É toda a subversão do sujeito e, sobretudo, a dialética do desejo que Didi-Huberman convoca aqui.

Penso agora no objeto La pintura española, em que Senise, numa referência ao quadro Las meninas, de Velázquez, acentua a questão do olhar já invocada pelo pintor espanhol: ao mirarmos no pequeno buraco aberto por Senise em uma robusta publicação, um livro mesmo que se encontra pendurado, tal como um quadro em uma parede, vemos nosso próprio olhar na obra, através de um espelho, a nos espreitar.

Algo resta da relação sujeito/objeto. Um objeto que é causa do desejo. E isso insiste, na história da arte e também na história da obra de certos pintores. “O artista, afirma Didi-Huberman, “estaria dividido entre a arbitragem, que busca o arremate da obra, a obra ideal, que capturaria o que resta de irrepresentável, e a partilha, que perpetua a divisão do ‘sujeito da pintura’’’. O saber do artista seria, assim, o saber como dúvida, como desejo e, certas vezes, como dilaceração. Seria operar pela divisão entre a arbitragem e a partilha, que comporta diversas saídas. O que não significa que o artista possa alcançar o ideal a partir disso que se sabe, visto que tal saber é, paradoxalmente, um “saber que não se sabe”. Mas esse “saber que não se sabe” não é algo do qual simplesmente não se tenha consciência. Ele é da ordem do inconsciente, que não é o não sabido, mas sim o inconsciente estruturado como linguagem, como propõe Lacan. Trata-se, como ressaltou o psicanalista francês, de um “saber fazer com”, um saber fazer por meio da própria obra, saber fazer algo com o resto, como nos ensina Senise.

Mas lidar com restos não garante a Senise alcançar o arremate último da pintura: vencer, anular, fazer sumir os impasses e limites da pintura e da sua própria pintura. Se assim fosse, o artista não pintaria mais, sua pintura não avançaria para outros suportes. Lidar dessa forma com os restos não significa que Senise os tenha arrematado definitivamente. Seu olhar é desejante. Sua obra o olha. Caso contrário, não veríamos hoje os diferentes destinos da pintura de Daniel Senise, e eu não me arriscaria a concluir este ensaio afirmando que no caso desse artista a própria pintura poderia ser pensada como resto.

 

 

 

 

 

 

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