Daniel Senise

Antes da Palavra, paisagens e ações

Daniela Labra

Texto publicado no catálogo da exposição Antes da Palavra, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, 2019

Sem árvores, rochedos, marinas ou campinas, esta pode ser considerada uma exposição de paisagens — um dos grandes temas da pintura e sua história. A paisagem na obra de Daniel Senise é, contudo, imagem não naturalista de aspecto volátil a ser decodificada pelo sistema de pensamento e signos de uma época cuja arte se afasta da representação para apresentar o mundo real, tornando o motivo da obra o próprio modo como esta se insere no plano que chamamos de realidade.

Atuante desde os anos 1980, Senise refinou até o limite do apagamento o elemento figurativo presente em sua obra inicial, em um caminho de construções conceituais sobre o universo da pintura, sua tradição acadêmica e a dicotomia natureza/cultura na arte. Ao mesmo tempo, aprofundou investigações sobre técnicas, materiais e suportes para além da tela, renovando e rearticulando os interesses que sempre configuraram sua base discursiva-visual e alcançando resultados que praticamente levaram à obliteração da ilustração no seu trabalho. Desse modo, referências e apropriações da história da arte ocidental, experimentos com tensões volumétricas, justaposição de matérias, evocações de vazios, criação de paisagens mentais, arquiteturas e memórias conjecturais são apresentadas em composições que reformulam a cada vez noções de espacialidade, temporalidade, presencialidade, memória e apagamento.

A ausência na presença é um paradoxo explorado pelo artista em toda sua obra, sendo esse um tema que remete à ideia de Vanitas, muito associada ao gênero da natureza-morta na pintura europeia do século 15, em especial à flamenca e à poesia barroca. Vaidade, futilidade, opulência em contraste com a efemeridade da vida configuram o motivo Vanitas. Ainda que em Senise a figuração esteja em plano subjetivo, a paleta cromática baixa e os planos espaciais vazios ligam-se a questões da transitoriedade da existência e ao tempo que tudo constrói mas também devora.

A importância do dado temporal no discurso visual de Daniel Senise é evidente, não estando apenas ali como tema mas como parte do seu método para gerar imagens e pigmentações; as marcas e manchas visíveis nas superfícies das peças são prova de um tempo transcorrido que é protagonista. Nesse lugar, a representação do tempo que transcorre — como numa natureza-morta — é substituída pela temporalidade de fato, palpável, a qual exacerba um segundo paradoxo, o da representação/real, contido na obra de arte contemporânea.

A forma tela-pintura-janela é onipresente no trabalho do artista, e a bidimensionalidade pictórica é tautológica nos recortes quadrados ou retangulares vazios de imagens que conduzem à elaboração de paisagens mentais individuais. Ao mesmo tempo, contudo, a percepção do espectador é contingenciada no aqui e agora do real, ao modo do minimalismo, como aponta o filósofo Hal Foster. Assim, o sujeito que olha é confrontado menos com possibilidades de elucubrações oníricas do que com o niilismo de obras cujas discussões orbitam em torno de seus próprios materiais marcados por tempos de uso ou esquecimento. Nesse movimento, as paisagens referidas neste texto nada têm a ver com representações da natureza em si, sendo mais bem ativadoras de memórias atadas a cotidianos não artísticos transformados em poesia melancólica. Entretanto, resta ainda um sopro onírico, mais bem fantasmagórico, que sempre parece nos salvar do enorme peso da materialidade que insiste em evocar o incontrolável e duro real na arte de Daniel Senise.

Esta exposição reúne 23 trabalhos do artista carioca, entre pinturas e objetos, articulados em torno da instalação monumental 1.587, constituída por duas grandes telas suspensas no átrio da Fundação, postadas frente a frente, cujas lonas são lençóis usados em um motel carioca e no INCA (Instituto Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro). O título da obra decorre do cálculo de pessoas que passaram por esses lençóis ao longo de seis meses, em ambos estabelecimentos. Os números das presenças/ausências impregnadas nos tecidos foram alcançados com a ajuda de um matemático, e nomeiam cada face da instalação: “Branco 237” refere-se à movimentação no hospital, enquanto “Branco 1.350”, no motel. Somadas, essas cifram atingem 1.587 dramas e êxtases de desconhecidos amalgamados nesta obra de aspecto solene e vertiginoso. Em Porto Alegre, contudo, por questões de adequação ao espaço, vemos uma versão reduzida do trabalho original, intitulado 2.892, criado no final da década de 1990 e exibido apenas em 2011, na Casa França-Brasil, Centro do Rio.

Em diálogo com indagações presentes nas obras de Daniel Senise, uma programação de intervenções sonoras foi elaborada trazendo à Fundação Iberê Camargo ações de seis artistas que pensam o som espacial, material e conceitualmente, ou seja, para além de uma estrutura melódica. São eles: Marcelo Armani, Ricardo Carioba, Raquel Stolf, Pontogor, Tom Nóbrega e Felipe Vaz. Evocamos assim a filosofia antiga dos Estoicos, para quem a ação era prioritária à verbalização das ideias, e combinamos ato e pensamento para tomar o interior da instituição numa grande caixa de reverberações de silêncios e rumores em proposições que indicam deslocamentos temporais, ausências, espacialidades virtuais, interrupções de fluxos, assincronia, paisagens de som e outros motes integrados às ruidosas ideias primordiais contidas nas pós-pinturas que conformam esta exposição: Antes da Palavra.

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