A Construção da Pintura
Felipe Chaimovich
Texto publicado no catálogo da exposição do artista na Galeria Brito Cimino, em São Paulo, em 2001.
A pintura é construção. Ao superpor planos de tecido, tinta e pó de ferro, Daniel Senise articula sítios arqueológicos. Como numa exploração de estratos históricos, o público é convidado a refazer os elos que conectam as partes do edifício.
A disciplina construtiva data dos anos oitenta, desde então, telas de cretone exibem como base o decalque de pisos com cola e pigmento. Já nos quadros de voile, a impressão inaugural é substituída pela transparência de níveis pictóricos coexistentes. Em ambos os casos, texturas e objetos arrematam a arquitetura.
Entretanto, a pintura de Senise cumpre uma agenda de questões internacionais. Para sobreviver em meio à afluência ininterrupta de novas mídias ao palco da arte, ela deve justificar a permanência de problemas exclusivos do ponto de vista material e do histórico.
Por um lado, a essência material da técnica é tematizada em cada obra. Operações basilares são revisitadas com a concorrência de novos materiais. No entanto, a certeza das combinações tradicionais é abandonada; o artista só aos poucos dominou a resistência e durabilidade de limalhas, cola e pano. Assim, a reinterpretação de velaturas e gradações foi também descoberta experimental.
Por outro lado, a herança histórica da grande pintura eurocêntrica torna-se horizonte conceitual sob dois aspectos. A referência mais imediata está no próprio repertório: Friedrich, Whistler etc. Mas o legado fundamental mostra-se no método característico da feitura de retratos e paisagens a partir do decalque de padrões. Toda imagem surge de rituais que incorporam valores do surrealismo clássico: acaso, deslocamento e fusão.
Contudo, as heranças universais da pintura são interpretadas à luz dos meios de produção do artista. Senise retoma aspectos gerais para amarrá-los ao lugar específico em que trabalha pela prática de registrar o piso do próprio ateliê. A oficina do pintor é, assim, condição do ofício, e a tela, sudário do chão.
O padrão impresso torna-se base do trabalho pictórico. O fundo é tratado como esquema, ao qual a composição posterior é subordinada. A pintura ocorre apenas no primeiro plano, pois a capacidade da monotipia original é preservada na tela. O registro do local funciona como elemento arqueológico na obra final. O quadro torna-se uma construção analisável a partir das operações sobre as linhas primitivas no tecido. Qualquer representação de espacialidade aparece como derivação da plano.
O aspecto ficcional da pintura torna-se um problema a ser enfrentado. O ilusionismo perspectiva pareceria incompatível com a decisão de manter a platitude das monotipias. Surge, assim, o desafio que leva à produção atual.
Por seis meses, o artista contemplou uma série de impressões feitas num verão americano, em Greenpoint. Tons variados haviam sido obtidos pelo registro das paralelas do piso. A percepção dessas linhas como elementos de desenho iluminou-lhe o embate com a herança perspectiva.
Senise iniciou, então, a série de colagens figurando espaços arquitetônicos. Diferentes lugares foram representados nos últimos dois anos, mas nenhum muito identificável. O interesse foi antes a composição geométrica do quadro — desta vez as marcas do chão impresso fariam parte do sistema ilusionista.
A colagem funcionou como quebra-cabeça. Partindo de cálculo prévio, o artista buscou nos tecidos matizes e padrões que se encaixassem no desenho projetado. O corte em tiras forneceu-lhe os ângulos necessários para o marchete das linhas e os tons para o claro-escuro.
Entre os temas escolhidos, a figuração de um grupo de museus vazios. Vastos espaços emergem de cores sombrias. Desabitados, nada abrigam em suas paredes. Banharam-se na luz indefinida dos sonhos. Essas telas mostram o lugar de exposição da arte para melhor reivindicarem o direito à permanência. O pintor articula a platitude das partes com o ilusionismo do todo, evidenciando a concorrência do desígnio e do acaso na construção da obra.
Senise reafirma sua profissão de fé. Mantendo a discussão sobre o sentido atual da técnica pictórica, o conjunto trazido a São Paulo atesta a continuidade de uma pesquisa que não se furta no mergulho exploratório numa agenda objetiva.
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