Prata
“Hobbema consiste na vista frontal, difusa e atravessada por manchas e borrões, de uma estrada que só se esclarece pela presença das árvores magras e de copas altas que a ladeiam em toda a sua extensão visível, e que, de acordo com as leis da perspectiva, diminuem enquanto avançam em direção ao horizonte. “Roubada” de uma pintura desse pintor do século XVI, a verossimilhança da cena reforçada pelo recurso da perspectiva, um estratagema cujo objetivo é “anexar” o espaço de quem se coloca diante dela, obrigando-o a percorrê-la com os olhos, colide com o fato de ela haver sido pintada com tinta metálica prateada, de artificialismo enfático. Como a insistir na negação desse recurso promotor de ilusão, aperfeiçoado por séculos do Naturalismo, o artista cola em ordem decrescente, de acordo com o tamanho, da esquerda para a direita, réguas escolares pintadas de prata. O olhar do espectador hesita entre mergulhar na pintura ou quedar-se em sua superfície. À perspectiva compreendida como a estrutura através da qual corrige-se e se dá estatuto de verdade a uma narrativa imaginária que, ao invés do que parece, não acontece no espaço real, o artista opõe as réguas, os instrumentos de confecção da ilusão. Mais do que desvendar as regras de montagem desse gênero de ilusão que a pintura fabrica, essa pintura exibe as ferramentas com que se constrói todas elas. Nos jogos intertextuais, nas paródias e palíndromos, o artista abandona a máscara de demiurgo para apresentar os instrumentos com que trabalha.”
(trecho do texto “The Piano Factory”, de Agnaldo Faria, publicado em Daniel Senise. The Piano Factory, Andrea Jakobsson Estúdio, Rio de Janeiro, 2002)