Bumerangue
“Neste livro, por exemplo, logo na primeira dezena de páginas, encontramos uma obra peculiar, a obra 3 Caminos, realizada em 1995. Ela integra uma pequena coleção de imagens inspiradas na trajetória dos bumerangues, todas feitas em 1995, dentre as quais há três telas chamadas, simplesmente, de Bumerangue, como a imagem que abre este ensaio. É possível falar delas por sua articulação mais epidérmica, por assim dizer. Trata-se de obras exemplares do amadurecimento da relação de Senise com vestígios indiciais, marcas de processos pelos quais os materiais de sua pintura passaram em algum estágio preliminar de sua fatura. Nelas, os vestígios de oxidação do ferro não apenas foram apropriados pictoricamente pelo artista, mas foram produzidos por ele, que dispôs pregos sobre a tela de forma a definir curvaturas que são, por sua vez, também esquemas de trajetórias percorridas por bumerangues, ou seja, rastros passados ou futuros de outros corpos em movimento. Assim, em seu assunto e sua fatura, a epiderme dessas pinturas remete a vestígios e pegadas.
Mas é plausível também, tendo em vista as décadas de produção que Senise já apresentou ao público, perceber nessas obras uma pista do interesse do artista pelos aparatos da visão. A evidência dessa analogia entre o bumerangue e o olhar está na já citada tela 3 Caminos, em que, na altura dos olhos da silhueta de garota, parecem sair e voltar três dos esquemas de trajetória justapostos como um único emaranhado. A figura remete a algum estudo de ótica incipiente, talvez medieval, pré-perspectural, e, ao mesmo tempo, é metáfora perfeita para os dilemas aludidos no introito acima. Em vez da representação linear e geométrica do rebatimento de linhas de luz, o olhar aparece representado por um emaranhado de curvas que vêm e vão sem distinção entre sujeito e entorno, contrabalançado, ainda por cima, por uma espécie de linha fantasma espelhada que, quem sabe, aluda ao que a garota olha e não enxerga ou mesmo ao que ela não vê e ainda assim percebe.”
(trecho do texto “Daniel Senise, ou: só queria te dizer duas coisas”, de Paulo Miyada, 2018)