Beijo do elo perdido e Quase Infinito
“A espessura do signo, seja em relação ao seu significado, seja em relação a sua fisicalidade, pode ainda ficar mais estreita. Este é o caso da tela Quase Infinito, na qual foi empregado o mesmo princípio catalisador da oxidação e que nos apresenta um desenho próximo do oito deitado, a cifra que Jorge Luis Borges, a propósito das “1001 Noites”, explicou tratar-se do contato entre o zero dividido entre o fim e o recomeço. Mas nesse caso a linha sinuosa não cruza sobre si, mantém-se no limiar do enunciado. É como se o desenho da cifra, sob o peso da matéria ferruginosa, recusasse assumir explicitamente uma dimensão etérea, preferindo sugerir força vital, latejante.
Enfatizando a ductilidade do signo, testando-o, como no caso do oito deitado que equivale ao infinito, o artista chega à criação de imagens perturbadoras, como é o caso de O Beijo do Elo Perdido. Nessa tela troca-se a fisicalidade ostensiva do signo por sua capacidade em estimular a imaginação. Sobre um chão homogêneo e cinzento, sem nenhuma irregularidade, duas cabeças simétricas, escultóricas, cabeças enigmáticas, talvez de pássaro, igualmente cinzentas e descarnadas de outros predicados a não ser a cova dos olhos, engatam-se através de suas bocas ou bicos, entrelaçam-se num beijo que as funde num só corpo, um beijo que faz de seus contornos bem delineados o símbolo do infinito. A iluminação tênue que vem do alto, ao passo em que as destaca do chão, produz sombras que não permitem saber o quanto elas estão separadas dele ou se são florações. Do signo que representa o infinito à representação de uma trajetória espiralada, o que se tem, convém lembrar, são formas avessas à monotonia da linha circular. O simbolismo da linha em espiral sugere que o retorno ao ponto de partida acontece num novo patamar, não se trata de mera repetição. A espiral impede que se caia no equívoco de pensar que tudo já foi feito. Ao contrário, ela favorece a noção de que, embora não seja possível ser o primeiro, é possível inventar a novidade, que da repetição nasce a diferença. A poética de Senise alimenta-se do trânsito entre ideias e matérias diversas, sempre garantindo a espessura do resultado, como se a densidade da tela fosse a confirmação de que ela é um campo calcado na experiência e que posteriormente é suspenso diante de nossos olhos.”
(trecho do texto “The Piano Factory”, de Agnaldo Faria, publicado em Daniel Senise. The Piano Factory, Andrea Jakobsson Estúdio, Rio de Janeiro, em 2002)
https://www.danielsenise.com/texto/the-piano-factory-4/