2.892
“2.892 é a cifra título deste projeto de Daniel Senise e se refere a vivências extremas borradas pelos dados numéricos evocados na obra central da mostra: uma instalação de escala monumental onde se postam face a face duas gigantescas telas feitas com lençóis usados em um motel e no INCA —Instituto Nacional do Câncer do Rio de Janeiro.
Deixando os dramas dos desconhecidos em plano silencioso, Senise obteve, com o auxílio de um matemático, o pragmático cálculo de pessoas que passaram pelos lençóis ao longo de sua vida útil de seis meses, em ambos os estabelecimentos. Assim, chegou aos títulos de cada uma das faces da instalação: Branco 462, referente à movimentação no hospital, e Branco 2430, no motel. Somadas, essas cifram atingem então os 2.892.
Mas sabemos que Daniel Senise não é exatamente um artista fascinado por números, sua pesquisa investiga fundamentalmente o universo da pintura, embora há muitos anos não trabalhe como pintor no sentido estrito. […]
Em 2.892, como em outras mostras, o artista escolhe objetos mundanos e preserva (ou forja) as marcas do tempo entranhadas na matéria perecível e, assim, aprisiona em suporte artístico as memórias de materiais comuns e gastos transfigurados em obra de arte. Intervindo minimamente nas superfícies de que se apropria, Senise permite que as marcas de uso gerem uma estampa própria, como no caso dos lençóis. Nestes, remendos e manchas fazem saltar imagens mentais de estórias anônimas sem que haja nenhum tipo de ilustração — o que confere uma narratividade peculiar à instalação.
Ao se distanciar do processo pictórico habitual, Daniel Senise alcança hoje formatos que se esquivam da literalidade. Assim, por oposição formal, comenta questões relativas à pintura e à representação do mundo dispensando a figuração, veiculando reflexões acerca do binômio natureza-cultura tanto nos alvos lençóis puídos como na massa acinzentada de papéis reciclados.”
(trecho do texto de Daniela Labra publicado no catálogo da exposição do artista da Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, em 2011)
“A essa série de itens devemos acrescentar um que é fundamental: o sudário. O tecido que enxuga o suor, que absorve a marca, que retém a matéria e que guarda na sua trama as manchas, o sangue, as células. Senise vem considerando o uso do sudário desde o início de seu trabalho e vem aplicando essa técnica de várias maneiras. Já recolheu centenas de lençóis hospitalares e outras centenas de lençóis de motéis. Esse material guarda desde manchas de sangue até de sêmen, e juntos relacionam prazer e dor, vida e morte. Esses lençóis foram esticados em duas grandes estruturas na Casa França-Brasil na obra 2.892, uma de frente para a outra, hospitais de um lado, motéis do outro, formando duas grandes paredes brancas, através das quais os visitantes passavam, como se fosse, observemos isso, a alameda de Hobbema. Esse talvez seja o ponto de vista do artista: a perspectiva é uma realidade dentro da qual nos colocamos com nossa perplexidade diante da vida e da morte. Por outro lado, os brancos convertidos em duas grandes paredes são em alguma instância uma qualidade da luz. Retomemos o início do texto, quando falamos sobre o que é o pictórico nesta obra e suas características de sombra e luz. Pois bem, esse início onde a sombra claramente se impõe dá gradativamente margem à luz, de modo que mesmo os tons avermelhados e amarelados da terra dão espaço paulatinamente aos brancos. Acentuam-se os retângulos brancos como aberturas de luz, um tipo de luz opaca que ilumina o que circunscreve com uma sóbria luminescência mística. Onde está essa luz depurada na história da pintura? Em qual pintor estaria essa origem? Certamente não é o branco suprematista de Maliévitch. A natureza dessa luz não é de fora, de uma fonte externa. É antes um branco que acolhe e exprime em seu âmbito a luz da pintura e que ocorre somente na pintura e através dela e torna-se um dado do real: um objeto oriundo de uma onda cuja emissão é mental, material e intelectual. Trata-se de uma modalidade de percepção e de pensamento.”
(trecho do texto “Quase Infinito”, de Alberto Saraiva, publicado em 2018 pelo APC em “Quase Aqui: Daniel Senise” )